TAS e a proteção de Direitos Humanos no movimento privado do esporte



Andrei Kampff
Membro Filiado ao IBDD, a ANDD – LAB
Advogado

 

1 Introdução 

Estamos vivendo uma revolução no esporte que poucos têm se dado conta. Ela passa pela mobilização de atletas, pela vigilância externa ainda mais presente e pela defesa de direitos humanos no esporte. Esses três movimentos têm afetado diretamente o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS). 

Como é sabido, o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) não é conhecido como um tribunal de direitos humanos. Ele é uma corte que historicamente tem como atenção principal aplicar e interpretar os regulamentos dos órgãos governamentais do esporte, internacionais e – inclusive – nacionais. 

Recentemente, até em função das pautas apresentadas pelos dias atuais, se torna cada mais evidente que nesses temas em que há o encontro entre ordens constitucionais distintas – Lex Publica e Lex Sportiva -  , o Tribunal começa a apresentar um novo olhar em seus julgados. 

Como temos percebido, há uma intersecção cada vez maior entre a jurisprudência do TAS e os direitos humanos. Isso se tornou também interesse na literatura acadêmica e nos debates públicos. Esse caminho se fez necessário até como forma de auto-proteção. O Tribunal está sob escrutínio público, como assim deve ser.  

Para citarmos apenas um caso, talvez o mais importante e pioneiro dentro desse processo, a decisão Mutu e Pechstein do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) em outubro de 2018 deixou claro que o TAS não escapa ao escrutínio indireto do tribunal de Estrasburgo. 

 Apesar do caso ter desencadeado novos caminhos e perspectivas, até hoje, foram poucas as publicações dedicadas à interação entre a Convenção Européia de Direitos Humanos (CEDH) e o TAS. 

Este artigo quer avançar nessa reflexão necessária e abrir os olhos para algo que nos parece evidente. Esporte não se afasta do direito e direito tem como base a proteção de direitos humanos. 

Afinal, para advogados esportivos, acadêmicos e administradores, 2023 - com essas pautas - está se tornando crucial para a regulamentação do esporte.

2 - TAS e a proteção de Direitos Humanos no movimento privado do esporte 

Em publicação científica, Antoine Duval abre uma análise sobre as decisões do Tribunal Arbitral do Esporte relacionadas a Direitos Humanos dizendo que o cerne do trabalho do tribunal privado é a interpretação dos regramentos esportivos, mas que há um movimento apresentando um caminho interpretativo diferente. 

Escreve ele logo na primeira página do documento (2022, p. 132), em tradução livre:

O Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) não é conhecido como um tribunal de Direitos Humanos. Em vez disso, seu foco principal é aplicar e interpretar os regulamentos dos órgãos governamentais do esporte (SGBs) internacionais (e às vezes nacionais). Só recentemente é que a intersecção entre a jurisprudência do TAS e os Direitos Humanos se tornou de interesse na literatura acadêmica e nos debates públicos. Em particular, a decisão Mutu e Pechstein do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) em outubro de 2018 deixou claro que o TAS não escapa ao escrutínio indireto do tribunal de Estrasburgo.

A constatação de Duval demonstra que o TAS historicamente não caminha tendo como pilar a ideia que apresentamos aqui. O entendimento que queremos apresentar é o de que os Direitos Humanos estão na base da construção privada do esporte. De maneira resumida, como escreveu Wladimyr Camargos em artigo para o portal de Direito Desportivo Lei em Campo121, “no esporte, a dignidade da pessoa humana precede qualquer valor vinculado à competição, ao rendimento esportivo. Desse modo, o esporte competitivo deve se amoldar sempre à plena vigência da prevalência dos direitos humanos.”

O trabalho de Duval apresenta questões importantíssimas, que merecem atenção. Em especial, que o tribunal privado tem tomado recentemente decisões tendo por base a Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH) e a própria jurisprudência de tribunais estatais europeus de Direitos Humanos. 

Os painéis do TAS, quando confrontados com fundamentos baseados na CEDH, foram instados muitas vezes a decidir, por exemplo, se a Convenção Europeia de Direitos Humanos era aplicável no âmbito dos procedimentos do tribunal privado.

Muitas decisões negaram a aplicabilidade da CEDH a disputas disciplinares envolvendo particulares122. A tese apresentada era a de que a aplicação da CEDH seria justificada exclusivamente contra a ação estatal. O exercício do poder público seria o gatilho necessário para a aplicação dos direitos garantidos na CEDH.

Em decisão do tribunal envolvendo a Federação Francesa de Natação, foi aplicado “que os direitos fundamentais processuais protegem os cidadãos contra violações de tais direitos pelo Estado e seus órgãos e, portanto, são aplicáveis apenas a uma jurisdição estabelecida por um Estado e não às relações jurídicas entre entidades privadas, como associações e seus membros”

123. No mesmo caso, os árbitros sustentaram que “o TAS tem entendido reiteradamente que a CEDH não se aplica aos órgãos disciplinares de uma associação, que não podem ser qualificados como 'Tribunais' na acepção da CEDH”.

Um posicionamento que vem ganhando uma oposição cada vez mais forte. Segundo Duval no seu artigo Lost in translation? The European Convention on Human Rights at the Court of Arbitration for Sport (2022, p. 134), tradução livre: 

Uma posição tão rigorosa sobre a aplicabilidade da CEDH parece estar em desacordo com a função e operação peculiares da governança do esporte internacional. Na verdade, esta é uma área da vida social em que os órgãos privados (principalmente associações suíças) exercem poder regulador transnacional no interesse da comunidade esportiva.

Sobre a necessária proteção de direitos humanos no ambiente esportivo, escreve o professor de direito Paulo Feuz (2018, p. 103) que:

O esporte é um dos elementos do piso vital mínimo sendo este no contexto constitucional um dos elementos da dignidade da pessoa humana, devendo ser tutelado, protegido e garantido sua aplicação, organização e gestão, para que o mesmo cumpra função social em nosso Estado.

Embora o esporte se utilize da autonomia e do consentimento para substanciar a força regulatória, quando esta prática se afasta da proteção de direitos humanos, o exercício da reflexão de faz necessário. 

Como a maioria das organizações internacionais tem o controle monopolista sobre determinado esporte, os membros dessa cadeia dificilmente conseguem fugir da sua jurisdição. Escreve Duval (tradução livre): 

Embora esses poderes sejam muitas vezes formalmente justificados com base no consentimento, na prática é difícil argumentar que o são. De fato, a maioria das SGBs tem controle monopolista sobre um determinado esporte, portanto, os participantes de competições esportivas internacionais dificilmente podem escapar de sua jurisdição. Em suma, é relativamente fácil argumentar que os SGBs são funcionalmente equivalentes às autoridades públicas e, portanto, devem obedecer à CEDH. (DUVAL, 2022, p. 134).

Independentemente dessa discussão, é importante trazer à reflexão o entendimento de que o Direito é uno. Quando se trata da proteção de direitos humanos, o compromisso público e privado é inafastável. 

Escreve Júlio Cesar Finger (2000, p. 94):

Os princípios constitucionais, entre eles o da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III), que é sempre citado como um princípio-matriz de todos os direitos fundamentais, colocam a pessoa em um patamar diferenciado do que se encontrava no Estado Liberal. O direito civil, de modo especial, ao expressar tal ordem de valores, tinha por norte a regulamentação da vida privada unicamente do ponto de vista do patrimônio do indivíduo. Os princípios constitucionais, em vez de apregoar tal conformação, têm por meta orientar a ordem jurídica para a realização de valores da pessoa humana como titular de interesses existenciais, para além dos meramente patrimoniais. O direito civil, de um direito-proprietário, passa a ser visto como uma regulação de interesses do homem que convive em sociedade, que deve ter um lugar apto a propiciar o seu desenvolvimento com dignidade. Fala-se, portanto, em uma despatrimonialização do direito civil, como consequência da sua constitucionalização.

Com a proteção dos Estados soberanos, dos tratados internacionais e pela natureza esportiva, o que se nota é um avanço no relaxamento dogmático entre público e privado dentro da análise do TAS sobre a aplicação da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Ou seja, uma nova postura interpretativa vem sendo observada. 

2.1 - A derrota de um jogador e de uma patinadora que foi comemorada pelo movimento esportivo

O dia 2 de outubro de 2018 trouxe alívio para o movimento jurídico privado do esporte. Nesta data, a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) emitiu julgamento há muito esperado sobre o caso Pechstein e Mutu v. Suíça130. O julgamento tratava sobre a compatibilidade do artigo 6º, nº 1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos com o procedimento do Tribunal Arbitral do Esporte. 

Os personagens do processo, a patinadora alemã Claudia Pechstein e o ex-jogador de futebol Adrian Mutu, de nacionalidade romena, buscaram o Tribunal Europeu, separadamente, contestando a validade das sentenças decididas contra eles pelo TAS. Eles já tinham apresentado a contestação anteriormente sem sucesso ao Tribunal Federal Suíço, questionando a independência e imparcialidade do Tribunal Arbitral e a natureza da arbitragem forçada do TAS. Eles alegaram que seus direitos a um julgamento justo, no sentido do artigo 6 (1) da Convenção Europeia de Direitos Humanos, foram violados.

Adrian Mutu foi um atacante que apareceu com destaque no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Rápido e habilidoso, foi considerado um dos maiores jogadores romenos deste século, e recebeu o apelido de “O Brilhante”. Mas é sobre uma passagem que não engrandece essa biografia que vamos avançar. Em 2005, ele teve o contrato rescindido unilateralmente pelo Chelsea por doping e condenado a pagar uma multa milionária131.

O doping contraria o espírito esportivo. Por conta disso, a Justiça Esportiva o pune com rigor. São vários os casos de atletas que perderam grandes eventos por conta de doping. Ídolos de um país como o nadador chinês Sun Yang132, campeões mundiais como o norte-americano Christian Colleman133, artilheiros como Paolo Guerrero134 e tantos outros receberam penas pesadas que trouxeram prejuízos desportivos gigantes para suas carreiras. Mas não é só o esporte que se vê agredido pelo doping, essa punição também afeta a economia do esporte.

Em 2003, o Chelsea investiu 15 milhões de libras na contratação de Mutu, que era do Parma. Um ano depois, ele foi flagrado no antidoping por uso de cocaína e suspenso pela FIFA por sete meses. O clube inglês rescindiu seu contrato alegando justa causa.

Sem contrato, o jogador se transferiu para a Juventus e o clube londrino entrou com uma ação na Corte de Resolução de Conflitos da FIFA cobrando um ressarcimento por violações dos termos de contrato de trabalho. Após dois julgamentos na FIFA, ficou definido que o jogador teria que pagar multa de US$ 20 milhões, mas Mutu recorreu ao TAS.

O Tribunal Arbitral do Esporte ratificou a decisão135, mantendo a suspensão do atleta e a multa milionária. O romeno não se entregou, e então decidiu apelar ao Tribunal Federal Suíço, um tribunal estatal que revisa decisões do TAS dentro do movimento jurídico privado do esporte. Ele alegava que o TAS “não era independente, nem imparcial”, características inseparáveis da justiça.

O tribunal analisou o caso e definiu que “a apelação apresentada pelo jogador romeno foi considerada infundada136”, que o painel do TAS poderia ser considerado independente e imparcial e definiu que o clube londrino deveria receber o valor estipulado pela FIFA no primeiro julgamento.

Um ano depois da decisão, Adrian Mutu solicitou a proteção da Corte Europeia de Direitos Humanos, argumentando, essencialmente, que não teve direito a um julgamento em um tribunal “independente e imparcial”. Alegou também a natureza da submissão à arbitragem forçada do TAS, afirmando que seus direitos a um julgamento justo, na acepção do artigo 6 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, tinham sido violados.

Já Claudia Pechstein, patinadora de velocidade profissional que ganhou mais de cinquenta medalhas em competições internacionais, também enfrentou um julgamento por doping. 

Em 2009, a União Internacional de Patinação (ISU) suspendeu a atleta por dois anos, depois de testar positivo em exame antidoping. Pechstein recorreu da decisão perante o TAS, que, após a audiência pertinente, confirmou a suspensão imposta pela ISU. Posteriormente, o Tribunal Federal Suíço também indeferiu sua ação que consistia na anulação da sentença proferida pelo CAS.

Nesse contexto, a patinadora recorreu a tribunais estatais alemães. No entanto, tanto o Tribunal de Apelação de Munique quanto o Tribunal Federal Alemão emitiram decisões indeferindo as reivindicações da atleta. Então, ela decidiu tomar o mesmo caminho de Mutu. 

Pechstein apresentou uma reclamação junto à Corte Europeia, alegando que seus direitos fundamentais contidos no artigo 6.º, n.º 1, da CEDH, foram violados, que devido ao caráter “forçado” da cláusula compromissória contida na Regras da ISU, não havia renunciado adequadamente aos seus direitos. Além disso, alegou que seus direitos não foram respeitados por um “tribunal independente e imparcial” e que ela não teve uma “audiência pública”, apesar de ter solicitado uma. Apresentou igualmente um pedido de indenização por danos ao abrigo do artigo 41º da CEDH pelas perdas sofridas, ao contestar sem sucesso a decisão do TAS nos tribunais alemães.

A Corte Europeia, entendendo as semelhanças nos pedidos dos reclamantes, decidiu julgar os dois casos em um mesmo documento.

Em outubro de 2018, o tribunal se manifestou137. A decisão não foi favorável ao jogador e à patinadora. A Corte afirmou que o painel do TAS não era incompatível com o artigo 6 da Convenção de Direitos Humanos. A decisão destacou que o TAS era um tribunal imparcial e independente. 

No que dizia respeito ao financiamento do TAS por entidades desportivas, a CEDH destacou que os tribunais estatais são financiados pelos governos e considera que este aspecto, por si só, não é suficiente para estabelecer a falta de independência ou imparcialidade dessas jurisdições. Por analogia, a Corte entende que não é possível estabelecer a falta de independência ou imparcialidade do TAS com base em seu sistema de financiamento.

A decisão trouxe um alívio ao movimento esportivo. Ela confirmou que o TAS é um tribunal arbitral independente e que sua arbitragem (e a indicação e designação de seus árbitros) é compatível com os direitos processuais fundamentais e o devido processo legal. 

Uma decisão diferente colocaria em xeque toda a cadeia jurídica privada do esporte.

Segundo Antoine Duval (2022, p. 145): 

A partir daí, parece difícil argumentar que os procedimentos do TAS não estão sujeitos ao artigo 6 §1 da CEDH, embora ainda haja debates para determinar se os procedimentos do TAS estão em conformidade com as garantias do devido processo nele consagradas.

Logo após a decisão Pechstein da CEDH, o TAS mudou suas regras para permitir audiências públicas em algumas circunstâncias. Mais concretamente, foi alterado o artigo R57138 do Código de Arbitragem Desportiva. Ele passa a dispor que: “A pedido de pessoa singular que seja parte no processo, deve ser realizada audiência pública se a matéria for de natureza disciplinar” (tradução livre). 

No entanto, dispõe ainda que: “O pedido pode, contudo, ser indeferido no interesse da moral, da ordem pública, da segurança nacional, quando o interesse dos menores ou a proteção da vida privada das partes o exigirem, quando a publicidade prejudicar os interesses da justiça, quando os processos se referem exclusivamente a questões de direito ou quando já foi pública uma audiência realizada em primeira instância” (TAS, 2020, p. 26). 

 Em novembro de 2019, houve a primeira audiência pública com base em novos procedimentos do TAS, que foi transmitida ao vivo, quando do julgamento do nadador chinês Sun Yang. No entanto, o Tribunal tem negado ainda vários pedidos de audiências públicas139. 

O caso também mostra como a verificação externa exercida por tribunais estatais, como o Tribunal Federal Suíço e outros tribunais nacionais que cumpram normas com base na CEDH, tem papel decisivo para proteger dentro do TAS os direitos fundamentais e o devido processo legal.

3 – Conclusão 

O TAS, última instância do movimento jurídico privado do exporte, como se viu, tem apresentado um novo olhar do Tribunal sobre as questões envolvendo os Direitos Humanos. 

E dentro desse novo trabalho hermenêutico, os regramentos privados também têm tido papel importante. Eles têm avançado e reforçado internamente esses compromissos inegociáveis do exporte.        

Ou seja, esse avanço na proteção de direitos humanos em ambiente esportivo acontece em função das mudanças dos regramentos internos que estão em função das irritações trazidas pelo escrutínio do Tribunal Federal Suíço (última instância recursal para decisões esportivas), de cortes de proteção de direitos humanos, mas também da pressão da opinião pública.  

O Tribunal Arbitral do Esporte não só é a palavra final do movimento jurídico do esporte, a instância-mor da lex sportiva, como também suas decisões vão consolidando a necessária autonomia jurídica desse movimento transnacional.

Este caminho ajuda na legitimação do TAS. Como escreveu Ramon Negócio em Lex sportiva, da autonomia jurídica ao diálogo transconstitucional: o Tribunal “enquanto centro da ordem jurídico-desportiva, ele consegue dar eficácia às suas decisões em tal estrutura.”

Com a construção de uma jurisprudência própria, baseada em padrões interpretativos próprios, ele cresce em relevância e importância. Estas decisões, ao lado 

dos princípios gerais de Direito e da proteção de direitos humanos estão construindo a afirmação da autonomia da ordem desportiva de uma maneira séria, responsável e segura.

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