O Contrato de trabalho desportivo e suas peculiaridades



Ricardo Tavares Gehling1

Sumário: 1. Conceito e natureza jurídica do contrato de trabalho desportivo; 2. Especificidades do contrato de trabalho desportivo; 3. O contrato especial de trabalho desportivo como requisito da caracterização do desporto profissional. 4. Nulidade do contrato de trabalho desportivo e suas consequências; 5. Referências.

1. Conceito e natureza jurídica do contrato de trabalho desportivo

O atleta adquiriu formal e expressamente o status de trabalhador, com direitos e deveres inseridos num “contrato de trabalho”, apenas em 1976, com a promulgação da Lei 6.354, embora desde a década de 30 já houvesse a prática de retribuir a atividade esportiva com o pagamento de uma remuneração mensal.

Nesse interregno, muito se debateu sobre a natureza jurídica da relação entre atleta e clube, pois ela não estava prevista especificamente nem no Código Civil nem na Consolidação das Leis do Trabalho. SOARES (2008, p. 51) descreve bem essa polêmica pré-normativa:

Os juristas interessados nos problemas desportivos dividiam-se entre várias teses, que a rigor poderiam ser sintetizadas em três posições. Para alguns se tratava de um contrato inominado, de natureza civil. Outros entendiam que a relação clube-atleta estaria inserida em um novo ramo do direito, o Direito Desportivo, com especificidades e peculiaridades que o distinguiam. Já um terceiro grupo enxergava claros contornos trabalhistas, colocando os atletas ao lado de todo o conjunto de trabalhadores. Todos se embasavam em argumentos respeitáveis, com fundamentos jurídicos sólidos, mas inconciliáveis. A solução somente foi dada pela lei, que fez prevalecer a terceira acepção.

A Lei 6.354/76 passou a ser denominada lei do Passe 2, embora a exigência de pagamento do passe nas transferências de atletas de um clube para outro já

1 Advogado, sócio de GEHLING ADVOGADOS. Membro Fundador da ANDD - Academia Nacional de Direito Desportivo. Professor Convidado da PUC-RS. Email: ricardo@gehling.com.br

viesse ocorrendo em período anterior, a princípio sem qualquer limitação, em face dos contratos livremente pactuados, depois com base no Decreto 53.820/64 que, em contrapartida, assegurou ao atleta percentual sobre o valor pago e condicionou as cessões e transferências à sua anuência.

Apesar de ter sido prevista no projeto de lei que resultou na Lei Zico (Lei 8.672/93), a extinção do passe só veio a ocorrer por força da Lei 9.615/98 (Lei Pelé)3.

A Lei 9.615/98 consagra o caráter contratual trabalhista da atividade do atleta profissional, ao estabelecer no seu artigo 28 que a atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva.

2 Passe era a importância devida por um empregador a outro pela cessão do atleta durante a vigência do contrato ou depois de seu término (art. 11 da Lei 6.354/76). Era exigido de acordo com as normas desportivas, segundo os limites e as condições estabelecidas pelo Conselho Nacional de Desportos (art. 13) e o montante respectivo não podia ser objeto de qualquer limitação, quando se tratasse de cessão para empregador sediado no estrangeiro (art. 13, § 1º). O atleta tinha direito a, no mínimo, 15% do montante do passe, devidos e pagos pelo empregador cedente (art. 13, § 2º), mas sob a condição de que não tivesse dado causa à rescisão do contrato e não tivesse recebido qualquer importância a título de participação no passe nos últimos quatro anos (art. 13, § 3º). Caso o clube encerrasse suas atividades (dissolução do empregador), o atleta era considerado com passe livre (art. 17). Também tinha passe livre, ao fim do contrato, o atleta que, ao atingir 32 anos de idade, tivesse prestado 10 anos de serviço efetivo ao seu último empregador (art. 26).

3 A Lei Pelé, originariamente, além de extinguir a figura do passe, atribuiu aos clubes a obrigatoriedade de se constituírem em clubes empresas, enquadrou o torcedor como consumidor, viabilizou a criação de ligas pelas entidades de prática do desporto e dispôs acerca do direito de arena, dentre outras disposições. A extinção unilateral antecipada do contrato, por qualquer das partes, passou a ser admitida mediante uma compensação financeira, denominada cláusula penal. Sofreu inúmeras e sucessivas alterações: Lei nº 9.981/00 (Lei Maguito Vilela – criou o Superior Tribunal de Justiça Desportiva), Lei nº 10.264/01 (Lei Agnelo-Piva), Lei nº 10.672/03 (Lei da Moralização), Lei 12.346/10, que tornou obrigatório o exame de saúde periódico do atleta, e Lei nº 12.395/11.

Na doutrina, contrato de trabalho desportivo é conceituado como aquele “avençado entre atleta (empregado) e entidade de prática desportiva (empregador), através de um pacto formal, no qual resta claro o caráter de subordinação do primeiro em relação a este último, mediante remuneração e trabalho prestado de maneira não eventual” (ZAINAGHI, 2004, p. 15-17).

Como elementos extrínsecos, ou pressupostos do contrato de trabalho desportivo, destacam-se a capacidade e a idoneidade do objeto.

A Constituição Federal estabelece, no seu artigo 7º, XXXIII, a proibição de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos. No plano infraconstitucional, a Lei 9.615/98 permite à entidade de prática desportiva formadora do atleta o direito de assinar com ele, a partir de 16 anos de idade, o primeiro contrato especial de trabalho desportivo, cujo prazo não poderá ser superior a 5 anos (art. 29), vedando expressamente, no artigo 44, a prática do profissionalismo, em qualquer modalidade, quando se tratar de menores até a idade de dezesseis anos completos.

Quanto à idoneidade, pressuposto estabelecido no artigo 104, II, do Código Civil Brasileiro, diz-se que a prática desportiva deve ser realizada por meios idôneos e lícitos e em consonância com os princípios estabelecidos no artigo 2º da Lei Pelé4.

4 Art. 2º - O desporto, como direito individual, tem como base os princípios: I - da soberania, caracterizado pela supremacia nacional na organização da prática desportiva; II - da autonomia, definido pela faculdade e liberdade de pessoas físicas e jurídicas organizarem-se para a prática desportiva; III - da democratização, garantido em condições de acesso às atividades desportivas sem quaisquer distinções ou formas de discriminação; IV - da liberdade, expresso pela livre prática do desporto, de acordo com a capacidade e interesse de cada um, associando-se ou não a entidade do setor; V - do direito social, caracterizado pelo dever do Estado em fomentar as práticas desportivas formais e não-formais; VI - da diferenciação, consubstanciado no tratamento específico dado ao desporto profissional e não-profissional; VII - da identidade nacional, refletido na proteção e incentivo às manifestações desportivas de criação nacional; VIII - da educação, voltado para o desenvolvimento integral do homem como ser autônomo e participante, e fomentado por meio da prioridade dos recursos públicos ao desporto educacional; IX - da qualidade, assegurado pela valorização dos resultados desportivos, educativos e

Os elementos intrínsecos do contrato de trabalho desportivo são o consentimento das partes e a causa.

O consentimento, ao contrário do contrato de trabalho comum, deve ser expresso e por escrito, não sendo possível a caracterização de contrato tácito de trabalho desportivo.

Quanto à causa, “seriam as necessidades vividas por ambas as partes. De um lado o clube que necessita de atletas para repor ou compor determinada posição ou função carente no time e, de outro, o atleta que busca sempre as melhores condições de ambiente de trabalho possíveis, com o fim de bem desempenhar a sua profissão” (SÁ FILHO, 2010, p. 54).

O contrato de trabalho desportivo tem os mesmos requisitos genéricos do contrato de trabalho comum: subordinação, pessoalidade, não-eventualidade e onerosidade.

Seus principais requisitos específicos são a forma prescrita em lei e a determinação de prazo.

O contrato deve ser necessariamente por escrito (“firmado com entidade de prática desportiva”, na dicção do artigo 28 da Lei Pelé), e por prazo determinado (“com vigência nunca inferior a três meses nem superior a cinco anos”, segundo o artigo 30 da mesma Lei).

dos relacionados à cidadania e ao desenvolvimento físico e moral; X - da descentralização, consubstanciado na organização e funcionamento harmônicos de sistemas desportivos diferenciados e autônomos para os níveis federal, estadual, distrital e municipal; XI - da segurança, propiciado ao praticante de qualquer modalidade desportiva, quanto a sua integridade física, mental ou sensorial; XII - da eficiência, obtido por meio do estímulo à competência desportiva e administrativa.

O empregador deve ser necessariamente pessoa jurídica: “entidade de prática desportiva”, ou, vulgarmente, “clube”. A lei não admite que pessoa física possa contratar, como empregadora, um atleta profissional.

Outro requisito específico é a sujeição do contrato, por imposição legal (art. 28, I e II, da Lei Pelé5) a um termo estabilizador, consistente nas cláusulas indenizatória e compensatória, o que permite seja o vínculo de emprego considerado, enquanto vigente, como um ativo patrimonial da entidade empregadora.

Este termo estabilizador, em bases diferenciadas para compensar a entidade de prática desportiva e o atleta profissional, foi criado pela Lei 12.395/2011 que introduziu alterações substanciais na Lei 9.615/98.

Após a extinção do passe, em 1998, a lei possibilitava a estipulação contratual de uma cláusula penal para compensar a ruptura do vínculo.

5 Art. 28. A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente:

I - cláusula indenizatória desportiva, devida exclusivamente à entidade de prática desportiva à qual está vinculado o atleta, nas seguintes hipóteses:

a) transferência do atleta para outra entidade, nacional ou estrangeira, durante a vigência do contrato especial de trabalho desportivo; ou

b) por ocasião do retorno do atleta às atividades profissionais em outra entidade de prática desportiva, no prazo de até 30 (trinta) meses; e

II - cláusula compensatória desportiva, devida pela entidade de prática desportiva ao atleta, nas hipóteses dos incisos III a V do § 5o.

§ 1º O valor da cláusula indenizatória desportiva a que se refere o inciso I do caput deste artigo será livremente pactuado pelas partes e expressamente quantificado no instrumento contratual:

I - até o limite máximo de 2.000 (duas mil) vezes o valor médio do salário contratual, para as transferências nacionais; e (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011).

II - sem qualquer limitação, para as transferências internacionais.

Ocorre que a Lei 10.672/2003 introduziu o § 3º ao artigo 31 da Lei 9.615/98 (Lei Pelé): “Sempre que a rescisão se operar pela aplicação do disposto no caput deste artigo, a multa rescisória a favor do atleta será conhecida pela aplicação do disposto no artigo 479 da CLT”6.

Assim, houve quem sustentasse que o rompimento do contrato em desfavor do atleta lhe dava o direito à indenização do artigo 479 da CLT, sem prejuízo da cláusula penal, enquanto à entidade de prática desportiva era devida apenas a cláusula penal, o que caracterizava notório desequilíbrio contratual.

Esse desequilíbrio acabou sendo corrigido pela jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, antes da criação por lei das cláusulas indenizatórias e compensatórias, conforme o paradigmático precedente em que foi Relator o Ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos7:

“RECURSO DE REVISTA. JOGADOR DE FUTEBOL. LEI PELÉ. CLÁUSULA PENAL. RESCISÃO CONTRATUAL POR INICIATIVA DO CLUBE. PAGAMENTO INDEVIDO. NÃO PROVIMENTO.

1. A cláusula penal prevista pelo artigo 28 da Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé) tem sua aplicabilidade restrita às hipóteses em que o rompimento antecipado do contrato de trabalho dá-se por iniciativa do atleta. Tal é a interpretação sistemática da norma, notadamente em vista do quanto disposto no § 3º do artigo 31 do mesmo diploma legal. Tal é, ademais, sua interpretação teleológica.

2. Pondere-se que a referida cláusula foi introduzida no Direito Desportivo como sucedâneo do direito ao passe, que tinha por principal beneficiário o clube a que vinculado o atleta. Se, por um lado, a chamada Lei Pelé permitiu ao atleta "libertar-se" de seu clube quando do término de seu contrato de trabalho, garantiu ao clube, em contrapartida, direito a espécie de indenização caso o atleta opte por deixá-lo anteriormente à data aprazada. Ao atleta, caso a iniciativa da rescisão antecipada seja de seu clube, reservou o direito à indenização prevista pelo artigo 479 da CLT, equivalente à metade da remuneração a que faria jus até o termo do contrato. Libertou-se, assim, o atleta, assegurando-se a ambos os sujeitos da relação empregatícia direito a ver compensados os prejuízos decorrentes dessa rescisão antecipada.

6 Nos contratos que tenham termo estipulado, o empregador que, sem justa causa, despedir o empregado será obrigado a pagar-lhe, a título de indenização, e por metade, a remuneração a que teria direito até o termo do contrato.

7 TST - RR - 22900-69.2005.5.01.0059, 7ª Turma, DEJT 15/05/2009

Denota-se claramente, portanto, que as cláusulas estabilizadoras criadas pela Lei 12.395/2011 o foram sob nítida influência moderadora da jurisprudência trabalhista.

2. Especificidades do contrato de trabalho desportivo

Além dos requisitos já referidos, o contrato especial de trabalho desportivo tem outras especificidades que marcam, sobremaneira, sua natureza jurídica, como consequência da singular relação de trabalho a que corresponde.

Conforme já tivemos oportunidade de assinalar8, quanto à relação de trabalho comum o legislador equiparou o empregador à empresa (art. 2º da CLT) – definida sob o ponto de vista econômico “como a organização objetiva dos fatores da produção (natureza, capital e trabalho), com a finalidade de lucro, através da venda no mercado, assumindo por isso mesmo, os riscos da operação” (MORAES FILHO, 1971, p. 30) –, considerando como tal quem admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço (art. 3º).

A empresa visa primordialmente o lucro, por isso que o empregador assume os riscos da atividade econômica. A entidade de prática desportiva, embora cada vez mais dependa de acumulação de recursos, não tem sua atividade voltada primordialmente à obtenção de lucro.

Enquanto na economia se busca eliminar o concorrente, no desporto os concorrentes, ou adversários, se complementam. A lógica é diferente, pois “os competidores desportivos necessitam uns dos outros para produzirem o que eles vendem, e estão sempre ‘separadamente juntos’. São naturalmente adversários no plano desportivo e parceiros no plano econômico, tudo sob o manto da gloriosa

8 In Atleta Profissional, Revista LTr, v. 75, n. 9, p. 1093-1099, set. 2011

incerteza do resultado. (CARVALHO, Maria José, apud MELO FILHO, 2011, p. 17-18)”.

No plano interno, o trabalho coletivo do atleta estabelece uma simbiose em que a sua valorização profissional depende do sucesso do clube que o emprega e vice-versa. Supera-se o conceito clássico de trabalho realizado no interior do modo capitalista, no qual está presente, em maior ou menor grau, a fórmula de que o lucro do empreendedor é proporcional à quantidade de trabalho que empregue, pelo menor preço.

O empregador comum, ao impor jornada excessiva a seus empregados, por exemplo, em tese terá seu lucro aumentado; a entidade de prática desportiva que o fizer em relação aos seus atletas poderá ter o rendimento de cada um afetado, comprometendo o da equipe e, consequentemente, o objetivo maior da agremiação.

Rompe-se na relação de trabalho desportiva o conceito clássico de alteridade, segundo o qual, “o contrato de trabalho transfere a uma única das partes todos os riscos a ele inerentes e sobre ele incidentes: os riscos do empreendimento empresarial e os derivados do próprio trabalho prestado” (GODINHO, 2001, p. 69-70).

3. O contrato especial de trabalho desportivo como requisito da caracterização do desporto profissional

Desportista profissional não corresponde, necessariamente, segundo a rígida definição legal brasileira, à acepção comum que considera profissional quem pratique o esporte como meio de vida e subsistência.

Dando concretude à norma de eficácia contida a que se refere o inciso III do artigo 217 da CF9, a lei não conceitua desporto profissional, mas prevê que o desporto de rendimento10 pode ser organizado e praticado desse modo, conforme determinados requisitos.

A Lei Pelé, no parágrafo único do seu artigo 26, considera competição profissional aquela promovida para obter renda e disputada por atletas profissionais cuja remuneração decorra de contrato de trabalho desportivo. E no artigo 28, caput, dispõe que a atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva.

O artigo 94 estabelece obrigatoriedade de celebração de contrato especial de trabalho desportivo para atletas e entidades de prática profissional da modalidade de futebol, ressalvando expressamente ser facultada a contratação nesses moldes nas demais modalidades.11

Nas modalidades em que é opcional a celebração de contrato especial de trabalho desportivo é evidente que o uso dessa faculdade é exceção, independentemente da natureza da competição, das rendas auferidas e da contraprestação paga aos atletas a título de "incentivos materiais" e de "patrocínios",

9 É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados: III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional.

10 Excluem-se da profissionalização, portanto, o desporto educacional, o desporto de participação e o desporto de formação (incisos I, II e IV do art. 3º da Lei 9.615/98).

11 Art. 94. O disposto nos artigos 27, 27-A, 28, 29, 29-A, 30, 39, 43, 45 e no § 1º do art. 41 desta Lei será obrigatório exclusivamente para atletas e entidades de prática profissional da modalidade de futebol. Parágrafo único. É facultado às demais modalidades desportivas adotar os preceitos constantes dos dispositivos referidos no caput deste artigo

o que muitas vezes encobre um profissionalismo disfarçado (LEAL AMADO, 2002, p. 56)12.

Pelo disposto no artigo 28ª da Lei Pelé, considera-se autônomo o atleta maior de 16 anos que não mantém relação empregatícia com entidade de prática desportiva, auferindo rendimentos por conta e por meio de contrato de natureza civil, mas esse preceito não se aplica, face à restrição contida no seu § 3º, às modalidades desportivas coletivas.

Não sendo admitido que se considere autônomo o praticante de modalidade esportiva coletiva e tampouco permitindo a lei que a entidade de prática desportiva celebre com o atleta outro tipo de contrato de trabalho senão o especial desportivo, com os requisitos que lhe são próprios, especialmente a forma (por escrito) e o prazo (determinado), como seriam caracterizadas juridicamente as relações que de fato compreendam a prestação de trabalho desportivo, de forma remunerada, não eventual e mediante subordinação?

4. Nulidade do contrato de trabalho desportivo e suas consequências

Vimos que, ao contrário do contrato de trabalho comum, em que a forma de celebração é livre, o contrato de trabalho desportivo tem forma especial, expressamente prevista em lei. Não se trata de mera exigência ad probationem 13,

12 O ilustre Professor da Universidade de Coimbra, JOÃO LEAL AMADO, aponta que a principal causa destas tão frequentes situações de "falso amadorismo ou profissionalismo encapotado parece residir na forte tensão estabelecida entre o inelutável avanço do profissionalismo desportivo ao longo de todo o séc. XX, por um lado, e, por outro, a algo teimosa manutenção do ideal olímpico tal como desenhado por Pierre de Coubertin no séc. XIX"

13 "A forma ad probationem é aquela utilizada apenas para provar um ato, podendo portanto ser substituída por outro meio de prova. A forma ad substantiam por sua vez, não pode ser substituída e não tem apenas o papel de provar o ato" (BEER, Veronica, 2014)

mas da substância do ato14, pois as partes devem ajustar e fazer constar do instrumento contratual cláusulas obrigatórias.

Segundo o artigo 107 do Código Civil Brasileiro, a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir, o que sem dúvida se aplica subsidiariamente ao Direito do Trabalho (art. 8º, § único, da CLT).

O aspecto solene do contrato de trabalho desportivo caracteriza-se e se justifica, também, porque é apenas o ajuste instrumentalizado sob a forma expressamente prevista no art. 28 da Lei 9.615/98 - na modalidade em que ele é obrigatório ou, nas demais, quando for ajustada vinculação empregatícia - que pode criar o vínculo desportivo acessório, o qual constitui-se com o registro15 do contrato na entidade de administração do desporto (§ 5º da Lei Pelé). Um contrato tácito de trabalho desportivo, além de juridicamente impossível, não seria apto a gerar vínculo desportivo.

Logo, o contrato de trabalho desportivo não é do tipo meramente consensual. Apesar de a CLT prever no seu art. 443 a possibilidade de o contrato de trabalho ser ajustado verbalmente ou por escrito, prevalecendo, assim, o princípio da informalidade, para o contrato especial de trabalho desportivo essa norma não se aplica, justamente por se tratar de um contrato do tipo formal e solene, conforme expressa previsão legal (SÁ FILHO, 2010, p. 54).

14 Conforme CATHARINO (1969, p. 15-17): Quanto à forma, o contrato de emprego atlético apresenta-se diferente do gênero a que se pertence. Realmente, enquanto o contrato de emprego comum pode até ser tacitamente ajustado (CLT, art. 442), aquele forma ao lado dos contratos de emprego marítimo, artístico e discente (de aprendizagem). Quanto a eles, a forma escrita é da substância do negócio jurídico, e não apenas ad probationem (ver Cód. Civ. Art. 145, III). Assim sendo, o contrato em causa só é válido se celebrado por escrito, na presença de duas testemunhas.

Portanto, caracterizado um contrato de trabalho desportivo, tácita ou expressamente, sem a observância da forma essencial à sua validade (por escrito e com ajuste das cláusulas obrigatórias), será nulo, por força do disposto no artigo 166, IV, do Código Civil (É nulo o negócio jurídico quando não revestir a forma prescrita em lei), embora com efeitos ex nunc, pois não é possível devolver as partes ao status quo ante, dado que o trabalho prestado não pode ser restituído. Assim é, também, no Direito Português, como assinala LEAL AMADO (2002, p. 142):

Assim, a preterição da forma legal implicará a invalidade do contrato de trabalho desportivo (art. 5º/2), na senda do disposto no art. 220º do CCiv (16). De todo modo, verificando-se a existência de uma relação laboral desportiva sem que o respectivo contrato de trabalho tenha sido reduzido a escrito – hipótese pouco verosímil na área do “profissionalismo oficializado” (1ª e 2ª liga de futebol, campeonato da liga de basquetebol...), mas, pensa-se, nada rara na área do “profissionalismo encapotado” (handebol, voleibol, hóquei...) -, importa não esquecer que a declaração de invalidade deste contrato não produzirá efeitos retroactivos, operando apenas ex nunc, em virtude do disposto no art. 15º/I da LCT.

Não sendo possível a restituição de que trata o art. 884 do Código Civil17, impõe-se compatibilizar a vedação de ajuste tácito de um contrato do tipo formal e solene com o princípio da primazia da realidade vigente no Direito do Trabalho e o da vedação ao enriquecimento sem causa. Por não se tratar de nulidade decorrente de objeto ilícito, ou de proeminente interesse público, deve ser assegurada a

15 CAIO MÁRIO (1986, v. 3:42) chama a atenção para o que denomina formalismo indireto, quando se exige o registro público de um instrumento contratual, como sucede com a cessão de crédito, por instrumento particular, para que se torne oponível contra terceiros.

16 Nota do Autor citado: “Solução idêntica vigora na Itália (art. 4º, § 1º, da Lei nº 91/1981), mas já em Espanha a doutrina considera a exigência de documento escrito como uma formalidade ‘ad probationem’, cuja inobservância não implica a invalidade do contrato de trabalho desportivo – neste sentido, v., p. ex., Sagardoy Bengoechea & Guerrero Ostolaza, El Contrato de Trabajo des Deportista Profesional, Civitas, Madrid, 1991, pp. 52 e ss., e Roqueta Buj, El Trabajo..., cit., pp. 128 e ss.”

17 (Do Enriquecimento Sem Causa) - Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

remuneração pactuada pelo trabalho prestado, por aplicação analógica da súmula 363 do Tribunal Superior do Trabalho.

Todavia, a maioria dos tribunais trabalhistas, inclusive o TST, não segue essa orientação, situando-se a jurisprudência predominante nas posições extremas de, ou reconhecer possível e sem nenhuma ressalva a caracterização de contrato tácito de trabalho desportivo18, ou de entender que “o contrato-realidade não prevalece quando há norma expressa facultando o clube a admitir desportista não-profissional sem vínculo empregatício.”19.

As duas posições radicais da jurisprudência majoritária, a par da insegurança jurídica que proporcionam, mostram-se contra legem.

5. REFERÊNCIAS

AMADO, João Leal - Vinculação Versus Liberdade. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.

BEER, Veronica. Boletim Jurídico. Acesso em 22/07/2018: https://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/artigo/3391/forma-negocio-juridico#_ftn7

CATHARINO, José Martins. Contrato de Emprego Desportivo no Direito Brasileiro. São Paulo: LTr, 1969.

GODINHO DELGADO, Maurício. Princípios de Direito Individual e Coletivo de Trabalho. São Paulo: LTr, 2001

MELO FILHO, Álvaro de. Nova Lei Pelé: avanços e impactos. Rio de Janeiro: Maquinaria, 2011.

MORAES FILHO, Evaristo de. Estudos de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1971.

18 V.g.: TRT/RJ - Processo RO 01420006820025010044 RJ; Relatora: Desª Maria De Lourdes Sallaberry; Julgamento: 14/08/2006; 8ª Turma; Publicação: 12/09/2006; TST-RR-446900-55.2006.5.12.0050; 6ª Turma; Rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho; Publicação: 11.05.2011.

19 TST AIRR-235240-64.2003.5.02.0201; 6ª Turma; Rel: Min. Maurício Godinho Delgado; Publicação: 25/08/2010. Ainda, neste mesmo sentido: TST RR-99300-33.2003.5.01.0015; 8ª Turma; Rel: Min. Dora Maria da Costa; Publicação: 25/04/2008; TST - RR-431-08.2011.5.09.0411; 4ª Turma; Rel. Min. Fernando Eizo Ono; Publicação: 31/10/2014.

SÁ FILHO, Fábio Menezes de. Contrato de Trabalho Desportivo - Revolução Conceitual de Atleta Profissional de Futebol. São Paulo: LTr, 2010.

SOARES, Jorge Miguel Acosta. Direito de Imagem e Direito de Arena no Contrato de Trabalho do Atleta Profissional. São Paulo: LTr, 2008.

ZAINAGHI, Domingos Sávio. Nova Legislação Desportiva: Aspectos Trabalhistas. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2004.

Veja também