Flávio de Albuquerque Moura[1]
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Fair play no esporte, tema palpitante, atualizado e objeto de várias interpretações e acepções de sua natureza jurídica, veio ao cume do debate, polêmicas e milhões de opiniões, em virtude do lance ocorrido na partida de futebol pelo Campeonato Paulista, edição de 2017, em sua 15ª. rodada, disputada entre o São Paulo Futebol Clube e o Sport Club Corinthians Paulista, no Estádio do Morumbi, no dia 16/04/2017, com o resultado SPFC 0 x 2 SCCP.
O lance se deu na jogada em que o atacante Jô, do Timão, leva um cartão amarelo do árbitro Luiz Flávio de Oliveira, que sob sua óptica teria atingido o goleiro tricolor (Renan Ribeiro). Até aí, não passa da narrativa pormenorizada de uma jogada de futebol, mas tudo se transforma na reportagem esportiva virulenta da semana quando o zagueiro são-paulino Rodrigo Caio, em atitude irreverente, salta do altar da pujante honestidade e desfecha um ataque defensivo à moralidade desportiva.
Para a surpresa de todos e especialmente do árbitro, o Zagueiro “Dom Rodrigo Caio de la Mancha” empunha de forma discreta sua sensibilidade ética e informa ao árbitro que o atleta Jô não teria atingido seu companheiro de esquadra, mas sim, ele próprio teria involuntariamente pisado na perna do seu Arqueiro.
Milhares de “Esportistas Panças” lançaram suas opiniões realistas em detrimento de outros milhares de “Éticos la Manchas” sobre o acerto, ingenuidade, desacerto ou vivacidade do ato praticado pelo jogador Rodrigo Caio, conceituado neste artigo como “fair-play desportivo”.
2. FAIR PLAY – SIGNIFICADO e ORIGEM
Ao se buscar o significado dessa expressão há uma incontestável vinculação do termo à prática esportiva, como v.g.: “jogar limpo”, “jogo justo”, “ter espírito esportivo”, “conformidade com as regras estabelecidas em um esporte”, dentre outros, contudo, sua amplitude ultrapassa as linhas das arenas, amoldando-se com bom afeiçoamento a teoria geral da boa conduta, o que significa dizer que mais uma vez a linguagem sem pátria e universal, que é o esporte, exporta conceitos para todas as sociedades do mundo, refletindo assim o fair-play lato sensu como “modo leal de agir”.
Martinho Neves Miranda[2] dedica um subitem em sua obra, para extenuar a grandiosidade do fair-play nas atividades esportivas, cujos trechos-chaves são de forçosa transcrição:
O fair-play, cuja tradução significa “jogo limpo”, constitui-se no cânone norteador dos procedimentos das autoridades desportivas na luta contra expedientes que, uma vez postos em prática, atenta contra o “espírito do jogo” como, por exemplo, o doping e a violência.
Esse princípio tem a sua modelagem inspirada na fonte do desporto moderno, que veio a ser precisamente a sociedade inglesa.
Extraindo da enciclopédia Wikipédia[3] a tradução e significado, obtém-se ainda a sua própria origem:
Fair play (traduzido literalmente do inglês para o português: jogo justo) é uma filosofia adotada em desporto que prima pela conduta ética nos esportes. A expressão nasceu em 1896, durante as primeiras Olimpíadas da Era Moderna, em Atenas. Barão de Coubertin, o organizador dos Jogos, idealizou a filosofia por meio da frase: "Não pode haver jogo sem fair play. O principal objetivo da vida não é a vitória, mas a luta".[1]
O conceito de fair play está vinculado à ética no meio esportivo. Os praticantes devem procurar jogar de maneira justa, não prejudicando o adversário de forma proposital.
Não há dúvida, pois, trata-se de uma expressão, de uma locução substantiva, definida não por sua etimologia, mas por sua contextualidade, como uma filosofia de vida, sinônimo definido pelos lexicógrafos como equidade, justiça, imparcialidade, elegância.
3. FAIR PLAY – PRINCÍPIO NORMATIVO OU IDEOLÓGICO?
Ao ingressar neste item, ouso divagar um pouco e plagiar o Msc. Marcelo Jucá Barros, quando em seu artigo jurídico “Decidindo por Princípios. A Hermenêutica na Justiça Desportiva”[4], assim instigou seus leitores, como é do seu feitio e prodigalismo acadêmico:
Para aqueles que imaginam que nesse ensaio eu darei a resposta de todas essas indagações, sinto decepcioná-los. Porém, tentarei pontuar algumas questões que certamente nos farão refletir sobre a possibilidade de estarmos nos direcionando a um rompimento com o Estado Democrático de Direito sob a justificativa de se aplicar ´a mais costumeira e razoável justiça´.
Pois bem, caros leitores, se o Mestre e Doutorando Marcelo Jucá Barros com a mais pura simplicidade e humildade que lhe são intrínsecas não categorizou respostas, não será nessa arena que o placar marcará um expressivo resultado, pois o jogo a ser assistido nas linhas seguintes respeitará os dois princípios mais singulares do direito desportivo: o equilíbrio competitivo (teórico) e a imprevisibilidade de resultados (prática desportiva).
Almeja-se sim, levantar a bola para sacudir a poeira neste campo fértil da hermenêutica jurídica e da principiologia do direito, pois não há evolução normativa, engrandecimento de valores e estabilização ou minimização dos conflitos sociais sem uma dialética germinativa.
“Dom Ricardo Caio de la Mancha”, o Cavaleiro Desportivo imaginário, praticou um ato voluntarioso, ético ou cumpriu um princípio normativo? A lealdade desportiva é faculdade ou dever? O Fair Play está normatizado? Se sim, é uma norma-sanção?
As respostas, obviamente, não são simples, diretas ou objetivas, pois nas semanas que se seguiram ao virulento e midiático fair-play várias foram as conclusões sobre a natureza do ato praticado, diante de interpretações diversas em campos miscigenados, seja da moral ou do direito.
Torna-se imperioso o debruçar sobre os conceitos e entrelaçamentos entre o direito e a moral, o positivismo, e os princípios gerais do direito, para então possibilitar um entendimento mais aprofundado da melhor hermenêutica do fair-play, iniciando-se a partir destes preceitos uma formação ideológica e real para encarar as indagações.
4. NOÇÕES PRELIMINARES
4.1. A Moral e o Direito
Se a discussão no campo esportivo é no sentido de analisar a conduta do atleta Ricardo Caio com repercussão no resultado da competição, ou seja, benéfica ou não em favor de sua equipe e companheiros de camisa, estaremos avaliando seu comportamento ético, humano, com possíveis e eventuais sanções morais de reprovação do terceiro, arrependimento próprio ou escárnio coletivo, v.g. da torcida, dos dirigentes ou da sociedade como um todo. Estar-se-á diante de uma sanção moral, resultado de um comportamento volitivo não aceitável em determinado tempo, modo e espaço de uma comunidade minimamente organizada.
Se a prática do atleta conceituada como fair-play detiver o condão de um princípio normativo-sancionador, a visão será de uma norma de direito, com sanção imposta de natureza material e pelo estado-juiz, adaptando-se no campo do direito desportivo a regra do art. 217, §§1º e 2º da CF acerca da jurisdição administrativa temática e de esgotamento de instância e temporal.[5]
Há um campo de intersecção entre a moral e o direito, que é o fundamento ético, que tem suas fontes romanas, logicamente com caracteres distintivos e próprios de cada instituto (moral e direito), resultando por sua vez em sanções distintas, mas são nas diferenças conceituais que se buscam as razões para identificar as semelhanças de propósitos.
Neste sentir, Vicente Ráo[6], em sua clássica obra, citando o iconoclasta jurista Russo Korkounov, da Universidade de São Petersburgo, conclui o tema nos seguintes termos:
A distinção entre a Moral e o Direito pode ser formulada muito simplesmente: a Moral fornece o critério para a apreciação de nossos interesses, enquanto o Direito marca os limites dentro dos quais nossos interesses se realizam. Destacar um critério para apreciação de nossos interesses é a função da Moral; determinar os princípios de sua recíproca limitação, é a função do Direito. As demais distinções decorrem desta, que é fundamental, o que também justifica a harmonia que deve reinar entre a Moral e o Direito.
Espelhando-se nessa fusão de conceitos, na qual a distinção parece ofertar o norte para jungir os institutos naquilo que neles se pode melhor extrair, visualiza-se um horizonte demarcatório para um ponto de partida na melhor hermenêutica jurídica do fair-play.
4.2. O Positivismo
Nesse item as jogadas serão de linha de fundo, para que não desvirtue a própria natureza do instituto principal desse artigo, que é de direito desportivo, com investigação em outros ramos do direito e na sua filosofia, como é natural e quase imprescindível na formulação de pensamentos, questionamentos e divagações sobre o complexo ordenamento jurídico e suas variáveis ramificações.
É de suma importância tratar um pouco do positivismo, pois no dizer de Vicente Ráo[7], as regras obrigatórias do direito, que cada povo adota, formam o seu direito positivo, e ele esclarece que o campo de atuação da normatividade se externa de forma nacional, diante do espelho que reflete o modo de viver e suas aspirações próprias.
Vicente Ráo até admite que o direito normativo universal é a busca do ideal, apesar de concluir por sua utopia, como assim alguns pensam sobre o idealismo ético-desportivo do “Dom Rodrigo Caio de la Mancha”.
Ocorre, que no direito desportivo há uma peculiaridade quase única e própria. As regras são continentais e de aplicação homogênea por todos os entes e pessoas que praticam a mesma atividade desportiva, ou até mesmo princípios genéricos-esportivos, o que significa dizer que normas que regem as relações desportivas, uma vez fixadas, atingem horizontes inimagináveis e de inquestionável efetividade, como os são, v.g., as regras de jogo de futebol estabelecidas pela FIFA (Associação das Federações Internacionais de Futebol).
A lex sportiva transnacional é bem definida pelo Professor Álvaro Melho Filho[8], quando dimensiona a grandeza dos institutos e entes envolvidos na complexa normatividade desportiva:
Registre-se, na sequência, que a operacionalidade dos entes diretivos desportivos transnacionais, mercê de sua lógica própria e da necessidade de autonomia, auto-organização e automanutenção do sistema desportivo transcende à esfera da normatização específica de cada estado, ou seja, impõe-se à produção jurídico-desportiva desbordar das dimensões geográficas de cada país e ultrapassar suas fronteiras territoriais.
E na mesma toada, Álvaro Melo Filho[9] sobreleva ainda mais essa transnacionalidade normativa quando o objeto em estudo é o futebol:
De todo modo, é irreversível que, de há muito, o futebol consolidou-se no “mundus sportivus” e alcançou uma singular projeção catalisadora e identitária, como atesta, por exemplo, o livro “Regras officiais de todos os sports”, publicado em 1916, pela Casa Sportman – RJ, tendo dois terços de suas páginas centrados e dedicados ao futebol. Dentro dessa realidade, não se pode reduzir o impacto do futebol na “lex sportiva” porque “se tornou um dos instrumentos brasileiros de pensar, e sobretudo de classificar o mundo”, quando se sabe que “é através do jogo que a sociedade exprime a sua interpretação da vida e do mundo”(Huizinga). É, pois, nesse contexto que a sociedade brasileira experimenta um sentido singular de totalidade e unidade em derredor do futebol, uma paixão de multidões, em todo o mundo, em face da “uniformidade y simplicidade de sus reglas de juego, que ha hecho posible su difusión superando barreras geográficas, políticas, culturales y económicas” que o tornaram uma linguagem universal”. (negritos pelo articulista)
Essa concepção da lex sportiva sem barreiras geográficas e culturais é de fundamental importância para avaliar e conceber os elementos integrativos da natureza jurídica do fair-play como norma de conduta ou positiva.
4.3. Os Princípios Gerais de Direito
A qualificação dos princípios gerais do direito como fonte de interpretação normativa não é novidade no ordenamento, e nem em muitos outros integrantes da família romano-germânica, como bem se vê textualizado na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu art. 4º[10]. O problema se evidencia e causa celeuma quando se define o princípio submisso ou secundário a lei, ou por outro lado, sobreposto e até conflitante com o ditame legislativo.
O Professor Marcelo Jucá[11] traz a doutrina sobre a aplicação da hermenêutica do direito desportivo com base em princípios, citando casos em que a dosagem de interpretação não se concilia com a regra escrita na norma, e chama a atenção para a linha tênue entre a discricionariedade e arbitrariedade.
É extremamente interessante os casos práticos ali expostos, pois muito se adapta ao que aqui se pretende alcançar ao final, sobre o paralelo entre obrigatoriedade ou observância dos princípios normativos que circundam o desporto, dentre eles o fair-play.
Traz-se à baila a maior preocupação do Prof. Jucá, quando dos julgamentos que vivenciou:
Muitas vezes, até mesmo revestidas sob o pálio da “busca da justiça”, decisões arbitrárias estão sendo efetivadas todos os dias. Nos casos concretos apresentados, apontei exemplos de utilização dos princípios onde mesmo em hipóteses de condutas atípicas, o princípio foi a “tábua de salvação” para o intérprete punir o que entendia ser uma prática reprovável. (negritos pelo articulista)
É absolutamente salutar a preocupação do “principiologismo”, até porque, o tema não se encerra em si, ao revés, é base e estrutura para se alcançar uma construção segura da melhor hermenêutica jurídica.
Del Vecchio[12], um dos maiores filósofos do direito do século XX, é categórico em apontar que a única condição imposta pelo legislador no tocante às relações entre os princípios gerais e as regras de direito é que não haja desacordo entre elas, ou antinomia, devendo formar um conjunto só e coerente, proporcionando assim uma diretriz segura.
E Del Vecchio deixou um conselho magistral para todos os tempos, muitas e muitas vezes esquecidos pelos intérpretes e aplicadores do direito:
A harmonia das diversas partes componentes do sistema deve ser experimentada e confirmada a cada instante, aproximando-se as regras particulares entre si e relacionando-as com os princípios gerais a que se prendem. Só assim poderá o jurista compreender o espírito do sistema e observá-lo em suas aplicações particulares, evitando os erros que se produziriam se ele se contentasse em considerar, por um modo geral, apenas esta ou aquela regra em si mesma. O jurista e, especialmente, o juiz, devem tanto quanto possível, dominar e, por assim dizer, reviver o inteiro sistema, compenetrando-se de sua unidade espiritual, desde os princípios remotos e subentendidos, até as mínimas disposições de detalhe, como se fossem autores do todo.
A ordem jurídica pátria constitucionalizou os princípios, descrevendo-os literalmente[13], como também disseminou por todo o seu corpo de forma indireta, aberta e transcendente, como v.g. Princípio da Igualdade (art. 5º, I), Princípio da Legalidade (art. 5º, II), Princípio da Liberdade de Expressão (art. 5º, IV), Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição (art. 5º XXXV), Princípio da Segurança Jurídica (art. 5º, inc. XXXVI), dentre inúmeros outros espalhados por todos os seus títulos e capítulos.
A Carta Política e Cidadã de 1988 inovou no direito desportivo, quando introduziu no seu art. 217 os pilares principiológicos das relações jurídicas na quadra desportiva, notoriamente os princípios da autonomia das entidades desportivas, nelas inclusas não só as denominadas entidades de administração (federações, confederações e ligas), como também (clubes, associações em geral), além de uma Justiça Desportiva com toda sua segmentação estruturada.
A Lei 9.615/98 (Lei Pelé) fixou em seu art. 2º um elenco de princípios fundamentais, nominando-os textualmente, e no mesmo sentir, tratou o CBJD – Código Brasileiro de Justiça Desportiva em dispor direta e indiretamente a aplicação principiológica no uso e interpretação de suas normas, elegendo ainda em seu art. 283[14] os princípios gerais do direito como fonte de aplicação.
A previsão implícita e até expressa de princípios no ordenamento é base e fundamento para interpretar a natureza jurídica do fair-play.
5. HERMENÊUTICA JURÍDICA
Percorrendo o campo da filosofia do direito em aquecimento ao início dessa partida jurídica, foi possível uma rápida apresentação dos elementos capazes de formatar convicções para possíveis respostas às indagações primordialmente elaboradas, dentro de um equilíbrio competitivo de teorias.
O aplicador das normas jurídicas, ou seu simples hermeneuta, não traz em si uma fórmula-padrão para diagnosticar as mais diversas mazelas das relações jurídicas, ao revés, o bom jurista ou julgador, concilia sempre a expressão literal da norma ao seu espírito, amoldando a regra normativa a cada caso concreto, pois não existe um modelo de decisão ou intepretação.
Carlos Maximiliano[15] pontifica a aplicação do direito nos seguintes termos:
As leis positivas são formuladas em termos gerais; fixam regras, consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. É tarefa primordial do executor a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o Direito.
A aplicação da hermenêutica jurídica sobre as normas de direito desportivo não é uma missão fácil, como assim não é qualquer estudo ou interpretação das demais regras de direito, pois a mutação social, propulsora das inovações legislativas, exige do intérprete ou executor uma sensibilidade quanto ao conteúdo, expectativa de realização e idealismo pretendido, sendo bem simplório e resumido ao definir essas dificuldades.
René David[16] faz uma grande incursão no Direito Comparado para identificar nos sistemas do direito contemporâneo os institutos jurídicos diversos e comuns entre as ordens nacionais, apresentando a concepção da hermenêutica nos países do sistema romano-germânico, no qual se inclui o ordenamento brasileiro.
A concepção comum que se tem da regra de direito e do nível onde ela se deve situar em relação aos princípios, por um lado, e à solução dos casos concretos, por outro, é um dos pontos fundamentais – insuficientemente sublinhado – que estabelecem uma estreita comunhão entre os modos de ver e de raciocinar dos juristas em todos os países que aderem à família romano-germânica.
A concepção de regra de direito admitida nos países da família romano-germânica não traz como consequência autorizar uma previsão mais fácil da solução que comporta tal ou tal litígio. Tudo o que restringe a especialização da regra de direito, aumenta automaticamente o papel de interpretação do juiz.
Formular a regra de direito em termos de uma excessiva generalidade é fazer dela alguma coisa de pouco preciso, e conferir aos juízes um grande poder discricionário na aplicação de regra de direito. Por consequência, a segurança das relações não aumenta pelo facto de ser tornar mais fácil descobrir a regra de direito aplicável; antes de verificaria o contrário disto.
Feitas essas digressões, chegou-se ao momento crucial de revolver ao tema principal, que é definir a natureza jurídica do fair-play no desporto, possibilitando ao leitor encontrar suas acomodações éticas ou suas inquietudes práticas.
6. FAIR PLAY NO ESPORTE E SUA NORMATIZAÇÃO
Dispõe o Art. 2º do CBJD – Código Brasileiro de Justiça Desportiva, em seu inc. XVIII[17] que não só a interpretação, mas a aplicação das normas nele dispostas, deverão observar o princípio do “espírito esportivo (fair play)”. E já no seu introito, Art. 1º., §1º, indica os destinatários da norma, englobando todos os atores que direta ou indiretamente estão no cenário da atividade do desporto.
Por sua vez, o art. 156 do CBJD define o que seja infração disciplinar, nos seguintes termos: “Infração disciplinar, para os efeitos deste Código, é toda ação ou omissão antidesportiva, típica e culpável.”
Já no art. 258 do mesmo Códex encontra-se a norma ética de repulsa a conduta antidesportiva: “Assumir qualquer conduta contrária à disciplina ou à ética desportiva não tipificada pelas demais regras deste Código.”
A previsão ainda mais abrangente de resistência do legislador quanto a atitudes que afetem a moralidade e o espírito esportivo se encontra no artigos 282, como se vê: “A interpretação das normas deste Código far-se-á com observância das regras gerais de hermenêutica, visando à defesa da disciplina, da moralidade do desporto e do espírito desportivo”(negritos fora do texto original)
Diante da leitura dos dispositivos do CBJD forçoso é admitir que o legislador infralegal foi incisivo em repugnar as condutas antidesportivas, e por sua própria natureza, a cada tipicidade vincula-se automaticamente uma sanção.
Encontra-se no CBJD a junção da norma e do princípio como elementos integrativos na finalidade comum de garantir o fair-play desportivo, preservando-se a paridade de armas na competição e a soberba da imponderabilidade do resultado.
Martinho Neves Miranda[18] define o fair-play formal como o comportamento exigível diretamente pela observância das regras oficiais dos desportos e das normas objetivas estabelecidas para a realização das competições, concluindo que:
Isso porque o ‘fair-play’ se traduz, em suma, no respeito às regras do jogo, sem a introdução de expedientes ilícitos para ganhar uma partida, bem como na adoção de comportamentos que respeitem a disciplina desportiva.
Isso significa dizer que a observância do ‘fair-play’ não constitui um ato discricionário, ou de mera benevolência do profissional do esporte, não lhe sendo meramente recomendável a adoção desta ou daquela conduta ética, tratando-se, antes de tudo, de padrão comportamental rigorosamente exigível de quem atua no universo competitivo.
Ao se conceituar fair-play no início desse artigo viu-se os sinônimos a ele agregados, com destaque para equidade e imparcialidade, sob pena de desequilibrar a disputa justa e alterar o resultado do jogo disputado.
Álvaro Melo Filho[19] reproduz a célebre conceituação de igualdade de Rui Barbosa, contextualizando com o filósofo grego Aristóteles, que se apropria exatamente na ideia da igualdade de condições nos atores, quando das disputas desportivas, para que se tenha a maior proximidade possível de uma situação paritária.
Não é outra a tipicidade do art. 243-A do CBJD, que define como prática contrária a ética desportiva atuar com o fito de influenciar o resultado de partida, prova ou equivalente.
Rubens Approbato Machado[20] define a natureza jurídica das normas que tratam da disciplina e competição desportiva como normas positivas, de conteúdo material e formal, regulando os Tribunais Desportivos, suas atribuições, os procedimentos, bem assim a tipicidade das infrações desportivas, ficando indene de dúvidas a imperatividade das regras descritas no CBJD.
O Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Guilherme Caputo Bastos[21], na apresentação de sua obra, transcreve parte do belíssimo discurso de Nelson Mandela, que exalta o desporto como um instrumento de reconciliação e da prática de bons exemplos a serem seguidos, ratificando-se assim o conjunto unitário de moral e direito que se indissociam da prática do fair-play desportivo.
Quem duvida que o desporto é uma janela importantíssima para a propagação do jogo limpo e da justiça? No fim de contas, o jogo limpo é um valor essencial no desporto!
[...] A reconstrução e a reconciliação, a construção nacional e o desenvolvimento devem andar de mãos dadas. Neste processo, o desporto é uma grande força de unidade e reconcialiação.
[...] Embora vivamos num mundo em que o bem que existe nas pessoas geralmente impera, é triste que também existam os que exploram a magnanimidade e a honestidade. Temos, pois, de afirmar e celebrar constantemente as boas ações e as virtudes sociais. Nesse contexto, o desporto desempenha hoje um papel preeminente na apresentação do que é bom e na exemplificação do que é saudável.
Nelson Mandela, em Discurso(1997)
Há dissenso quanto a natureza jurídica do fair-play no desporto, mesmo sendo praticamente uníssona sua exaltação de respeito e aplicabilidade. Leonardo Schimitt do Bem[22] define o fair-play como um bem (valor) estritamente esportivo e sem um correspondente direito fundamental reconhecido constitucionalmente.
Já Luis Guilherme Krenek Zainaghi[23] critica o dispositivo do art. 258 do CBJD, pois interpreta a norma como de tipicidade aberta, o que impossibilitaria de enquadrar as condutas típicas contrárias à ética desportiva na referida regra normativa.
Paulo Bracks[24] se filia a corrente de que o art. 258 não estabelece uma tipificação para punição por eventual descumprimento ao fair-play (atitude antiética ou antidesportiva), pois no seu entender não há na regra do futebol previsão neste sentido.
Partindo dos pressupostos já invocados dos institutos do direito envolvidos, não há como simplesmente nominar o art. 258 ou 243-A como normas abertas sem tipicidade, e olvidar a determinação expressa de interpretação e aplicação do Art. 2º, inc. XVIII e 282, todos do CBJD.
A melhor hermenêutica certamente passa pela análise do caso concreto, abstraindo dele a inteireza da conduta humana, procurando o intérprete e aplicador do direito harmonizar o que alertou Del Vecchio. As diversas partes do sistema devem se conjugar na obrigatória intersecção das regras e princípios, como se fossem autores de um todo.
7. FLAIR PLAY E A RESPOSTA SOCIAL
Assim como no romance de Cervantes, o Técnico Rogério Ceni não abandonou seu inseparável amigo (zagueiro), ofertando um elogio politicamente correto perante a mídia, mas reprovando a conduta no vestiário. Na mesma linha, o Capitão Tricolor Maicon alfinetou, mas sem a condolência do “Professor”. “A gente deveria respeitar a atitude do Rodrigo. Foi o que ele quis fazer na hora. Se foi certo ou não, é da consciência de cada um. Mas eu prefiro a mãe do meu adversário chorando em casa do que a minha", afirmou o zagueiro, que concedeu entrevista coletiva na tarde desta segunda-feira.[25]
E aos quatro cantos as opiniões e comentários foram os mais variados. Muitos elogios pela atitude, mas será que você faria a mesma coisa?
Ídolos do São Paulo e ex-jogadores da seleção brasileira elogiaram a postura ética e engrandecedora do Rodrigo Caio, como por exemplo, o ex-zagueiro Oscar (Campeão brasileiro de 1986 e tetracampeão paulista (1980, 1981, 1985 e 1987), ex-capitão do São Paulo e da seleção brasileira, contudo, parte da diretoria não aprovou o gesto nobre do atleta.
A sociedade moralista, na sua maioria das vezes é bem mais hipócrita do que idealista. Não é incomum os célebres comportamentos sociais: “Faça o que digo, mas não faça o que faço”, ou melhor, “Se eu fosse você, eu não faria isso”, só que na primeira oportunidade faz pior do que o outro faria.
8. CONCLUSÕES
Diante do caso prático que estimulou o presente estudo, foi possível observar que o fair play traz em si significados da moral e do direito, e que sua positivação no ordenamento jurídico pátrio se dá através de princípios e de normas, contudo, há divergência quanto à sua aplicabilidade e interpretação normativa, que para alguns doutrinadores não se faz possível aplicar uma sanção na hipótese de inobservância do fair play, considerando que não integra as regras obrigatórias do jogo e não tem conduta típica.
Entendo que o CBJD – Código Brasileiro de Justiça Desportiva é regra cogente, prevê de forma expressa a infração pela prática de atitude antidesportiva, e impõe o fair play como primado da ordem desportiva, pois só mediante um jogo limpo, com paridade de armas, ter-se-á o equilíbrio competitivo e a imponderabilidade do resultado.
O esporte é uma linguagem sem nacionalidade, ela reconstrói e reconcilia as relações humanas, é estereótipo das boas ações e virtudes sociais, no dizer de Nelson Mandela, e não pode, por sua magnitude, ser disciplinado por regras anacrônicas de um positivismo já deverás mitigado, relativizado e hoje estilizado pela hermenêutica jurídica.
O jurista ou julgador da atualidade não se permite enxergar a regra nua e crua, ao revés, veste-a com o bom senso, e vitaliza-a com os princípios.
A partir dessas premissas, o propósito desse ensaio, como já dito na sua origem, não era apresentar uma solução ou resposta única, mas sim possibilitar que o leitor obtivesse suas próprias conclusões quanto ao acerto ou desacerto, obrigatoriedade ou voluntariedade da prática do fair play desportivo.
Afinal, Dom Quixote de la Mancha e seu fiel escudeiro Sancho Pança, nas suas aventuras, não se preocupavam nas caminhadas certas, mas sim, em percorrer certos caminhos.
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https://pt.wikipedia.org/wiki/Fair_Play_(esportes), acessado em 29/04/2017.
[1] Flávio de Albuquerque Moura. Advogado. Sócio-Fundador da FMSA – FLAVIO MOURA SOCIEDADE DE ADVOGADOS. Presidente da Comissão de Direito Desportivo da Secção OAB/AL. Conselheiro no Triênio 2016/2018 da OAB/AL. Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Desportivo da Universidade Cândido Mendes(Ipanema). Membro Efetivo da ANDD – Academia Nacional de Direito Desportivo.
[2] in O direito no desporto. 2.ed. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2011. p. 50.
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Fair_Play_(esportes), acessado em 29/04/2017.
[4] in Revista Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD). ano 1, n. 1, jan.jun. 2016. Rio de Janeiro : ANDD, 2016. Org. Marcelo Jucá Barros e Maurício de Figueiredo Corrêa da Veiga, p. 163/171.
[5] Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
I – (omissis)
II – (omissis)
III – (omissis)
IV – (omissis)
§ 1º. O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
§ 2º. A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
[6] in O direito e a vida dos direitos. 5.ed. anotada e atual. por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1999. (RT Clássicos) p. 72.
[7] Op.cit. p. 99
[8] in Nova lei Pelé: avanços e impactos. Rio de Janeiro: Maquinária, 2011. p. 28.
[9] op.cit. p. 29/30
[10] Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
[11] op.cit, p. 170/171.
[12] in Les Principes Généraux de Droit”, in Recueil d’Études sur les Souces du Droit em l’Honneur de F. Geny, v. II, p. 69 e ss.
[13] Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[14] Art. 283 – Os casos omissos e as lacunas deste Código serão resolvidos com a adoção dos princípios gerais de direito, dos princípios que regem este Código e das normas internacionais aceitas em cada modalidade, vedadas, na definição e qualificação de infrações, as decisões por analogia e a aplicação subsidiária de legislação não desportiva.
[15] in Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
[16] in Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. Direito Comparado. Meridiano, 2ª. ed. p. 114 e ss.
[17] Art. 2º. A intepretação e aplicação deste Código observará os seguintes princípios, sem prejuízo de outros:
[...]
XVIII – espírito desportivo (fair play).
[18] op.cit. p. 51 e ss.
[19] in O desporto na ordem jurídico-constitucional brasileira. São Paulo : Malheiros, 1995, p. 164. “Se matematicamente igualdade é a expressão de relação entre duas quantidades equivalentes, juridicamente seu conceito pode e deve ser expresso como fez Rui Barbosa, emprestando-lhe o conteúdo consistente em tratar igualmente os iguais, mas desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam.”
“É de se observar, pois, que o critério relativo ao princípio da igualdade, ao fazer-se jurídico, deixou de ser o radical-aritmético para ser o geométrico-proporcional de Aristóteles, cifrado na regra de que os iguais por natureza devem ser tratados igualmente e os desiguais de forma desigual.”
[20] in Curso de Direito Desportivo sistêmico. São Paulo : Quartier Latin, 2007, p. 23.
[21] in Direito desportivo. Brasilia : Alumnus, 2014, p. 13.
[22] in A Fifa e o Direito Penal. Juris Síntese on line : Publicado em Nov. 2014.
[23] in O artigo 258 do CBJD, sua análise e interpretação nos tribunais desportivos. Juris Síntese on line : Publicado em Nov. 2014
[24] in Comissão de arbitragem da CBF e a justiça desportiva - temporada 2012. Revista de Direito Desportivo. Síntese n. 06. Abril-Maio/2012.