A Ratio Decidendi e a incompetência do poder Judiciário para aplicação das medidas excepcionais de execução aos Clubes de Futebol



Talita Garcez 1 

1 - Introdução

Este artigo analisa a ratio decidendi como componente decisório, elemento tão sensível à teoria dos precedentes, especificamente no que diz respeito ao convencimento do Poder Judiciário acerca da sua incompetência para aplicar as medidas excepcionais de execução em face das Organizações Esportivas voltadas para a prática do futebol profissional (os “Clubes”). 

É comum a sensação de insegurança jurídica no nosso sistema jurídico, e de certa forma, a formação dos precedentes nos transmite a ideia de previsibilidade, conhecendo o direito aplicável à espécie e proporcionando segurança jurídica.

Para tanto, é imperioso conhecer o raciocínio empregado para a conclusão da decisão judicial visando a estabilidade jurisprudencial acerca do tema.

Nessa toada, o Código de Processo Civil de 2015 indica que o sistema processual do Brasil deve adequar as decisões judiciais à jurisprudência dos Tribunais, de modo a mantê-la estável, íntegra e coerente, conforme a redação do artigo 926. 

De igual modo, o artigo 927, do Código de Processo Civil de 2015, apresenta um rol de situações de observância obrigatória aos juízes e tribunais, os quais devem seguir, inclusive, seus próprios precedentes. Assim, as novas decisões deverão estar adequadas e em consonância com o ordenamento jurídico através da observação dos incisos do artigo, cujas decisões são vinculantes aos órgãos jurisdicionais a eles submetidos.

Diante dessas regras, e visando a previsibilidade e igualdade das decisões judiciais e, em consequência, embasamento dessas decisões, cuja base advém da Constituição Federal, parece importante compreender a razão de o Poder Judiciário se declarar incompetente para aplicação das medidas excepcionais de execução aos Clubes.

Ademais, assim como um Estado nacional, a FIFA produz normas legais de aplicação imediata a seus membros (inclusive atletas), regras que perpassam áreas originalmente monopólio da ordem jurídica estatal, como questões de direito coletivo2 e individual do trabalho3

O “Regulamento FIFA”, em especial as Regulations on the Status and Transfer of Players (RSTP), é um corpo privado de normas jurídicas de aplicação autônoma para casos específicos consubstanciados por relações econômicas transnacionais. Nesse sentido, é quase irrelevante, ab initio, questionar se esses regramentos são reconhecidos por outra ordem jurídica (formalmente), já que tomam precedência pelo simples fato de serem mais efetivas na prática e cogentes para as partes diretamente afetadas4.

2 – Conceito de ratio decidendi

O conceito de ratio decidendi sempre foi muito discutido, e pode significar tanto “razão para a decisão”, como “razão para decidir”. Segundo o tradicional Black’s Law Dictionary, ratio decidendi é “o fundamento da decisão (...) o ponto de um caso que determina o julgamento.”5

A ratio decidendi é também reconhecida como o motivo determinante de uma decisão. 

Resumidamente, o motivo determinante, entendido como ratio, é a ideia, o pensamento sem o qual não se chegaria àquela decisão específica. Em outras palavras, corresponde ao motivo suficiente e imprescindível para a decisão que foi tomada. 

Analisou Luiz Guilherme Marinoni a respeito: 

“Motivo determinante, assim, é o motivo que, considerado na fundamentação, mostra-se imprescindível à decisão que foi tomada. Este motivo, por imprescindível, é essencial, ou melhor, é determinante a decisão. Constitui a ratio decidendi”6

3 – A importância da ratio decidendi

Ao se preocupar a nova lei processual com a incidência dos precedentes, sobressai então que a ratio decidendi constitui essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto, e essa é a regra de direito que vincula os julgamentos futuros aos quais tenha pertinência.

A correta identificação da ratio decidendi determina quais padrões decisórios serão obrigatoriamente repetidos no futuro, sendo a chave para garantir o equilíbrio entre a estabilidade da jurisprudência. 

Consoante as lições de Cândido Rangel Dinamarco e Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes, diante do que dispõem os artigos 926 e 927, ambos do novo Código de Processo Civil, a nova legislação processual provocou evolução normativa, o que deu relevância à jurisprudência, porque, com a imposição obrigatória para a observância dos precedentes, estes podem ser qualificados como fontes do direito. Veja:

Após toda essa evolução e agora com a obrigatoriedade da observância desses precedentes judiciais, na ordem jurídico-positiva brasileira da atualidade, a jurisprudência é uma fonte de direito. Mas ressalva se que a jurisprudência dotada desse poder de impor não é toda e qualquer linha de julgamentos, de qualquer tribunal e muito menos dos juízos de primeiro grau de jurisdição. Somente integram as fontes do direito os precedentes, decisões e linhas jurisprudenciais indicados na lei, especialmente no art. 927 do Código de Processo Civil, os quais, pelo maior peso sistemático de que são dotados, diferenciam-se dos demais e ganham essa eficácia de se projetarem em julgamentos futuros7

Assim, o que se espera de um precedente, é a sua capacidade de assegurar coerência ao direito, segurança jurídica e igualdade não pode constituir privilégio das soluções definitivas dadas a cada um dos casos. Em princípio, todas as questões, envolvidas e presentes de uma ou outra maneira nos vários processos jurisdicionais, devem contar com os benefícios da teoria dos precedentes.

Destaca-se, pois, a importância do previsto no artigo 926 do novo Código de Processo Civil, ao dispor que: os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Frisemos, então, que os tribunais não podem possibilitar a prevalência de divergências sobre questões jurídicas idênticas. 

Portanto, a interpretação da lei apresenta relevância nesse sistema, porque por meio dela irá a decisão explicitar os fundamentos que permitiram a conclusão do caso concreto, com o dever de ser racional e fiel ao direito. Uma vez sendo essa interpretação vinculativa, todos os demais juízes e tribunais deverão aplicá-la aos casos idênticos ou muito assemelhados, isto é, aplicação uniforme, afastando outras interpretações subjetivas dos julgadores.

Ao entendermos que é necessário que os tribunais e os juízes mantenham coerência com os próprios precedentes, trazendo a lume a tese que se aperfeiçoou para o caso, o que ficou delineado terá vinculação para a aplicação pelos magistrados de primeiro grau, como também pelos tribunais de segundo grau de jurisdição.

4 - Fundamentos determinantes sobre a incompetência do Poder Judiciário para aplicação das medidas excepcionais de execução às Organizações Esportivas voltadas para a prática do Futebol Profissional.

A adoção de medidas executivas atípicas em face do executado tem previsão no artigo 139, IV do CPC, ao fundamentar que "a nova lei processual civil adotou o padrão da atipicidade das medidas executivas também para as obrigações de pagar, ampliando as possibilidades ao magistrado que conduz o processo, para alcançar o resultado objetivado no processo executivo.".

De tal modo, não é raro enfrentarmos o tema em ações judiciais em que se pede perante a Justiça do Trabalho ou Comum a aplicação da medida excepcional de execução de ordem bloqueio de registro e transferência de atletas de um Clube devedor, perante a Confederação Brasileira de Futebol – CBF.

Entretanto, o que se tem evidenciado em não raras vezes é o indeferimento da medida, ou a revisão, e até mesmo a cassação da decisão que assim decidir, sob dois fundamentos determinantes:

(I) por atingirem terceiros (atletas) que ficam impedidos de serem contratados por referido Clube, ou ainda de serem liberados/transferidos para outros, afrontando o direito à liberdade de trabalho, e, ainda, à liberdade de contratação, se assemelhando em afronta à livre iniciativa; 

(II) por violar o artigo 217 da Constituição Federal, uma vez em que a penalidade de bloqueio de registro e transferência de atletas – “transfer ban”, compete a Câmara Nacional de Resolução de Disputas, conforme artigo 70 do Regulamento Nacional de Registro e Transferência – RNTAF da CBF8, e artigo 40, § 3º, III e IV do Regulamento Da Câmara Nacional De Resolução De Disputas da CBF9.

Ainda, o transfer ban no Brasil tem origem do artigo 141, §1º, inciso VI do Estatuto da Confederação Brasileira de Futebol, o qual define a competência da CBF a aplicação de referida sanção administrativa para manter a ordem desportiva e o respeito aos atos emanados de seus Poderes e Órgãos. 

Com isso, nos parece razoável a interpretação restritiva de tal medida, de acordo com o princípio da intervenção mínima, que, por força de norma especial de lei suprema, goza de autonomia.

O Poder Judiciário já se posicionou nos processos nº 1027695-26.2021.8.26.0114, 0024848-34.2022.8.26.0114, 0085890-41.2009.8.26.0114, no sentido de que a transferência de jogadores, por si só, não pode ser bloqueada, sob pena de imiscuir em competência própria da Justiça desportiva, sendo essa a ratio decidendi do tema. 

Assim, que em que pese o transfer ban pudesse ser considerado um meio atípico de execução no Judiciário, é sabido que existem limites e cautelas para adoção dessas medidas. No caso do bloqueio de registro e transferência de atletas, é certo que o mesmo esbarra em garantias asseguradas aos Clubes advindas da própria Constituição Federal, como da autonomia desportiva, liberdade de contratação e livre iniciativa, bem como princípios desportivos, tal como ao fair play, vez em que o Clube prejudicado não teria a igualdade de oportunidade dos demais, em especial no que diz respeito contratação de atletas e consequente estratégia de jogo.

Com isso, entendemos que o transfer ban se trata de uma medida de coercitividade às decisões dos órgãos judicantes das entidades de administração do futebol, em âmbito nacional e internacional, previstos nos respectivos Estatutos e Regulamentos da FIFA e CBF, dos quais os mesmos já disciplinaram pela não aplicação indistinta dessa modalidade, não sendo crível a sua extensão ao judiciário por questão de competência.

5 - Conclusão 

A Constituição brasileira dispõe como garantias a todos a liberdade, a isonomia e a legalidade, buscando permitir que a sociedade tenha segurança jurídica.

Com essa compreensão, verifica-se que o precedente jurisprudencial compõe o direito e com força imposta pela lei; e o faz, assim, para alcançar a necessária segurança jurídica e abraçar a garantia da liberdade e igualdade. 

Para tanto, é preciso conhecer como é interpretado e aplicado o direito e qual a eficácia do precedente. A formação do precedente enseja conhecer o raciocínio empregado para a conclusão da decisão judicial, de forma a permitir sua previsibilidade, conhecendo o direito aplicável à espécie e proporcionando segurança jurídica.

Diante desse quadro, se mostra um caminho possível para assegurar nas questões desportivas a competência exclusiva da CBF e seus Órgãos para aplicação das medidas atípicas de execução às Organizações Esportivas voltadas para a prática do futebol profissional, em especial a de registro e transferência de atletas partindo da premissa da autonomia desportiva.

Logo, delineia-se, o aperfeiçoamento da interpretação, e a ratio decidendi numa escolha sobre todos os casos futuros aos quais tenha pertinência, barrando esta injusta e muitas vezes desrazoável penalidade aos Clubes, e que muitas vezes permeia relação com terceiros e atletas.

6 – Referências Biblio e Webgráficas

BLACK, Henry Campbel. Black’s Law Dictionary. 4ª ed. revisada, West Publishing, St. Paul, 1968

DABSCHECK, Braham. International Unionism’s Competitive Edge: FIFPro and the European Treaty. In Relations Industrielles, vol. 58. Laval: Départment des Relations Industrielles Université Laval, 2003.

DINAMARCO, Cândido; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Novo Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 43-44.

DUVAL, Antoine. The FIFA Regulations on the Status and Transfer of Players: transnational law-making in the shadow of Bosman. In Asser Institute Research Paper Series, April 2016. Den Hague: Asser, 2016.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 292.

MITIDIERO, Daniel. Precedentes da Persuasão à Vinculação. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 59-60

https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202206/20220617160856_326.pdf

https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202303/20230330170927_443.pdf

https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202209/20220923095301_64.pdf

Processo 1027695-26.2021.8.26.0114 – Juiz Carlos Eduardo Mendes

Processo 0024848-34.2022.8.26.0114 – Juiz Carlos Eduardo Mendes

Processo 0085890-41.2009.8.26.0114 – Juiz Lucas Pereira Moraes Garcia


 

1 Advogada. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Especialista em Direito Desportivo. Presidente da Comissão Disciplinar da Liga Campineira de Futebol. Auditora Suplente da Comissão Disciplinar da Federação Paulista de Volleyball. Membro da International Association for Football Lawyers (AIAF), Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD) e Comissão Estadual de Direito Desportivo da OAB/SP.

 

2  DABSCHECK, Braham. International Unionism’s Competitive Edge: FIFPro and the European Treaty. In Relations Industrielles, vol. 58. Laval: Départment des Relations Industrielles Université Laval, 2003.

 

3  “Labor law and contract law are traditionally the monopoly of the nation state […] In this context, the FIFA RSTP appears as a transnational legal alien”. DUVAL, Antoine. The FIFA Regulations on the Status and Transfer of Players: transnational law-making in the shadow of Bosman. In Asser Institute Research Paper Series, April 2016. Den Hague: Asser, 2016. P. 21.

 

4  DUVAL, Antoine. The FIFA Regulations on the Status and Transfer of Players: transnational law-making in the shadow of Bosman. In Asser Institute Research Paper Series, April 2016. Den Hague: Asser, 2016. P. 21-22.

 

5   The ground of decision. The point in a case which determines the judgment. BLACK, Henry Campbel. Black’s Law Dictionary. 4ª ed. revisada, West Publishing, St. Paul, 1968, p. 1429.

 

6  MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 292.

 

7  DINAMARCO, Cândido; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Novo Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 43-44.

 

8  “Art. 70 - Compete à CNRD apreciar quaisquer questões decorrentes do presente Regulamento, além de julgar e sancionar infrações a este, bem como aos demais dispositivos de Regulamentos ou dos estatutos da FIFA ou da CBF que tratarem sobre os temas abrangidos no presente Regulamento.” disponível em: https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202303/20230330170927_443.pdf acesso em 29/05/2024.

 

9  “Art. 40 - No exercício de suas funções, a CNRD pode aplicar as seguintes sanções, cumulativamente ou não: ... § 3º – Às pessoas jurídicas, no que couber: ... III – proibição de registrar novos atletas, por período determinado não inferior a seis meses nem superior a dois anos; IV – proibição de registrar novos atletas por um ou dois períodos completos e, se for o caso, consecutivos de registro internacional;” disponível em: https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202209/20220923095301_64.pdf acesso em 29/05/2024.

 

 

 

 

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