Marcos Ulhoa Dani
Juiz do Trabalho do TRT da 10a Região
Membro da ANDD – Academia Nacional de Direito Desportivo
Os principais times de futebol do país acumulam dívidas de mais de 10 bilhões de reais (https://esportes.r7.com/futebol/fotos/ranking-mostra-as-maiores-dividas-do-futebol-brasileiro-confira-a-posicao-do-seu-time-08052023#/foto/22 – acesso em 03/06/23). Esta situação financeira aflitiva representaria, para a maioria absoluta das empresas do país, um estado pré-falimentar, em que consequências jurídicas, financeiras e sociais seriam sentidas imediatamente. Ocorre que, atualmente, em que pese a recente, salutar e novel possibilidade legislativa trazida pela lei 14.193/21, que previu a criação das SAFs – Sociedades Anônimas do Futebol, a maioria dos clubes de futebol do país ainda são associações sem fins lucrativos. O associativismo não é uma gestão profissional e tornou-se confortável no decorrer dos anos aos dirigentes esportivos, pois, primeiro, a associação não pode falir; em segundo lugar, não há responsabilização direta dos dirigentes por gestões financeiramente desastrosas; e, terceiro, há benefícios fiscais às associações. Este retrato gerou dívidas impagáveis, passivos monumentais, estados de insolvência, e, consequentemente, a diminuição abrupta do desempenho desportivo dos clubes. Ocorre que várias daquelas associações, sob os gritos da paixão dos torcedores por novas contratações milionárias, em que pese as inúmeras ações judiciais em curso, especialmente na seara trabalhista, vem acumulando novas dívidas. Sem um equacionamento do passivo pretérito especialmente com os atletas que fizeram parte de seus plantéis, demanda-se um “freio de arrumação” que transcende os umbrais dos tribunais trabalhistas, alcançando a seara desportiva propriamente dita.
Mais do que arrestos, sequestros e penhoras judiciais, que podem ser contestadas pelos recursos próprios, solução mais efetiva perpassa pela autonomia das entidades de administração do desporto e da Justiça Desportiva, no que tange à regulação da disciplina e das competições desportivas, lembradas por Maurício Corrêa da Veiga, em sua obra Manual de Direito do Trabalho Desportivo, 2a Edição, LTr, fls 38 a 40:
“...o art. 217, I, da Constituição Federal preceitua a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento. (…) Em síntese, tanto na formação das federações nacionais quanto das internacionais, observa-se o caráter associativo, em que os entes contratantes cedem parte de sua autonomia em favor da criação de uma entidade capaz de harmonizar os interesses do grupo. (…) o art. 217 da Constituição Federal consagra a autonomia desportiva que, segundo Álvaro de Melo Filho “é, portanto, ínsita ao próprio desporto e cada entidade associativa tem, dentro de certos limites de competência, plenos poderes de autorregulação e autonomormatização, resguardadas tão apenas as clássicas áreas de responsabilidade estatal, ordem pública e segurança pública.”.
As associações desportivas, como dito, vem acumulando novas dívidas com novos atletas, comissões técnicas e treinadores contratados, sem solver relevantes passivos pendentes perante os juízos trabalhistas.
Nesta situação, o juízo trabalhista pode adotar medidas atípicas na execução, inclusive de ofício, nos termos dos arts. 2o e 139, IV, do CPC, para assegurar que os mandamentos sentenciais sejam cumpridos e que os valores pecuniários deferidos sejam efetivamente adimplidos.
Neste sentido já se manifestou o E. STF, na ADI 5.941, ao analisar a constitucionalidade do art. 139, IV, do CPC, fixando entendimento que os poderes do juiz no processo incluem “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento da ordem judicial”, desde que obedecidos “o devido processo legal, a proporcionalidade, a eficiência, e, notadamente, a sistemática positivada no próprio NCPC, cuja leitura deve ser contextualizada e razoável à luz do texto legal”.
Sabe-se, nos termos do art. 375 do CPC, que as medidas coercitivas mais efetivas que se pode ter, no que tange aos clubes de futebol, são as de cunho desportivo, que efetivamente impactem no cenário competitivo do empregador desportivo.
Todavia, para que possamos chegar a explorar esse tipo de medida executiva atípica, deve-se observar a diretriz emanada pelo próprio E. STF, em caráter vinculante, eis que exarado em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Deve-se observar, portanto, a proporcionalidade da medida, e, notadamente, o devido processo legal. Dentro do conceito jurídico aberto de devido processo legal é necessário considerar a questão da competência material para a adoção de eventuais sanções desportivas às agremiações, eis que a questão constitucional da competência precede à aplicabilidade, ou não, de tais medidas.
É assente, como já explicitado, pelo disposto no art. 217, incisos e parágrafos da CRFB-88, que a Justiça Desportiva e os órgãos administrativos dos entes de administração do desporto são as esferas autônomas e competentes para se decidir a respeito de disciplina e competições desportivas. Por outro lado, os próprios regramentos desportivos, que são normas autônomas (costumes desportivos) a exemplo do Regulamento Geral de Competições da CBF do ano de 2023 (https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202302/20230214221219_73.pdf – acesso em 11/04/23), já preveem a necessidade dos clubes de futebol seguirem o chamado fair-play (jogo limpo) financeiro, sob pena de sofrerem penalidades desportivas, como perda de pontos, multas pecuniárias, proibição de registros de novos atletas ou, até mesmo, suspensão, desfiliação da entidade de administração do desporto ou rebaixamento de divisão (regulamentos próprios da CBF e da FIFA). Neste sentido, o art. 133 daquele regulamento geral de competições da CBF:
“Art. 133 – As normas sobre fair-play (jogo limpo) financeiro e licenciamento de clubes, editadas pela CBF, estabelecem requisitos e responsabilidades visando ao saneamento financeiro dos Clubes, que ficarão obrigados a cumpri-las, sob pena de sofrerem as pertinentes penalidades desportivas. Parágrafo único - O cumprimento estrito de tais normas, com a adoção de padrões gerenciais que resguardem o equilíbrio econômico-financeiro e competitivo dos Clubes, é condição essencial para assegurar às agremiações o direito de participar das competições, bem como a manutenção dos pontos e classificação conquistados.” (grifei)
Este conceito de fair-play (jogo limpo) financeiro já foi abordado pela doutrina nacional, em artigo da lavra do Exmo. Desembargador do Trabalho da 15a Região, Dr. Francisco Alberto da Motta Giordani, em artigo da Revista da Academia Nacional de Direito Desportivo (ano 2, número 3, Janeiro a Junho de 2017), ao exemplificar a quebra do fair-play por equipes de futebol, citando, inclusive, Álvaro de Melo Filho, quanto às potenciais consequências dos gastos desmedidos na gestão do futebol dos clubes:
“- clubes que contratam atletas que suas receitas não suportam pagar, ou deixam de pagar os salários de seus profissionais, ou de alguns deles, o que pode ser mais grave ainda, pela discriminação e/ou razão da “eleição” de quem deve e de quem não deve receber, para formarem equipes mais fortes e, assim, conquistarem títulos e prestígio, o que, para alguns, é visto como algo próprio do Desporto, uma espécie de álea do Desporto – embora isso não seja verbalizado, “como todas as letras”, e para outros é também uma agressão ao Fair Play; o grande nome do Direito Desportivo brasileiro, Álvaro de Melo Filho, com pena de mestre, já salientou que: É notório que os clubes sabem ganhar dinheiro e arrecadam cada vez mais. Contudo, os gastos crescem numa proporção bem maior, gerando desequilíbrio e engrossando a fila dos endividados. Por isso, a solução passa, necessariamente, pelo corte de despesas com salários absurdos e pelo refrear da volúpia de contratações milionárias, sob pena de o futebol transfundir-se num negócio cronicamente deficitário. De outra parte, no futebol, os investimentos sempre se fizeram, perigosa e arriscadamente, acima da capacidade de gerar receitas e sem propiciar retorno, funcionando como umaespécie de “bomba de efeito retardado”. “
O fair-play (jogo limpo) financeiro é, em outras palavras, e simplificando o conceito já há muito amadurecido e implementado no continente Europeu, a impossibilidade de entidades de prática desportiva gastarem mais do que arrecadam, como regra básica de governança. A irresponsabilidade financeira de dirigentes desportivos não pode mais passar impune, pois isto gera um círculo vicioso de descumprimentos pecuniários para com os empregados destas agremiações, em especial os atletas, gerando um crescente passivo que, com o passar do tempo, se torna impagável, inviabilizando, ao fim e ao cabo, a atividade desportiva. Tal atividade, quando gerida de modo responsável, é origem de renda, emprego, entretenimento, lazer e cultura. Este tipo de mudança de uma gestão amadora para uma gestão profissional do produto futebol já vem se refletindo, não só nos regulamentos desportivos, como também na legislação heterônoma estatal, a exemplo da recém-criada lei das SAF´s (Sociedades Anônimas do Futebol – Lei 14.193/21), que dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico. Os regramentos mencionados se direcionam, de modo uníssono, para uma gestão responsável do produto futebol, com a obediência de um “fair play financeiro”, sob pena de responsabilizações e consequências não só pecuniárias, mas, também, desportivas.
Já nos manifestamos, em artigo publicado juntamente com a Exma.colega juíza, Natália Queiroz Cabral Rodrigues, a respeito da validade das penalidades desportivas:
“Tais apenamentos são possíveis, na medida em que as regras desportivas ajustadas pelas entidades de administração do desporto são fontes legítimas do direito, como usos e costumes desportivos, nos termos, inclusive, dos arts. 1o,§ 1o, 16 e 50 da Lei Pelé, cuja autonomia decorre do preconizado pelo art. 217, I, da CRFB-88. As punições, segundo o artigo 48 e incisos da Lei Pelé, podem ir desde advertência e censura escrita até multa, suspensão e desfiliação ou desvinculação, sendo que estas três últimas punições poderão ser aplicadas após decisão definitiva da Justiça Desportiva. Sabe-se, pela visão dos torcedores, que a punição desportiva, mais do que a punição pecuniária, é a mais persuasiva no mundo do desporto, sendo de todo indicada a intervenção das entidades de administração do desporto e da Justiça Desportiva para que seja assegurado o cumprimento dos próprios regulamentos desportivos pertinentes.” Artigo Dificuldades da Mulher que atua no esporte profissional – acesso em 11/04/23).
No mesmo sentido vai o CBJD (Código Brasileiro de Justiça Desportiva - https://www.gov.br/cidadania/pt-br/composicao/orgaos-colegiados/cne/arquivos/codigo_brasileiro_justica_desportiva.pdf – acesso em 11/04/23), em seu artigo 191:
“Art. 191. Deixar de cumprir, ou dificultar o cumprimento:
I - de obrigação legal;
II - de deliberação, resolução, determinação, exigência, requisição ou qualquer ato normativo ou administrativo do CNE ou de entidade de administração do desporto a que estiver filiado ou vinculado;
III - de regulamento, geral ou especial, de competição.
PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a 100.000,00 (cem mil reais), com fixação de prazo para cumprimento da obrigação.
§ 1º É facultado ao órgão judicante substituir a pena de multa pela de advertência se a infração for de pequena gravidade.
§ 2º Se a infração for cometida por pessoa jurídica, além da pena a ser-lhe aplicada, as pessoas naturais responsáveis pela infração ficarão sujeitas a suspensão automática enquanto perdurar o descumprimento. “
Nesta esteira de ideias, percebe-se que os clubes vêm deixando a desejar no cumprimento de suas obrigações pecuniárias para com os seus atletas empregados, o que deve ser obstado, com vistas a evitar o crescimento de um passivo impagável. A gestão de grande parte dos clubes, em vez de adimplir com as suas obrigações pretéritas e correntes, vem trazendo mais dívidas ao seu passivo, como, por exemplo, a contratação de atletas de renome nacional o quê, pelas máximas do que normalmente ocorre (art. 375 do CPC), detêm salários mais elevados.
Voltando aos regulamentos desportivos como fontes formais do direito, como se vê do disposto no art. 8o, caput, da CLT, destaco o disposto no art. 64 do REGULAMENTO NACIONAL DE REGISTRO E TRANSFERÊNCIA DE ATLETAS DE FUTEBOL da CBF - https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202201/20220103141959_422.pdf – acesso em 11/04/23), que assim preconiza no que tange ao cumprimento do já conceituado “fair-play financeiro”:
“Art. 64 - Em cumprimento ao art. 12bis, dispositivo vinculante do FIFA RSTP, é dever dos clubes cumprir, tempestivamente, as obrigações financeiras devidas a atletas profissionais, técnicos de futebol e outros membros de comissão técnica, ou a outros clubes, nos termos dos instrumentos que entre si avençarem e formalizarem.
§1º - Ocorrendo atraso por mais de 30 (trinta) dias dos pagamentos previstos no caput deste artigo, sem que a mora financeira tenha amparo contratual ou justo motivo, os clubes podem ser sancionados, na forma do Regulamento da CNRD.
§2º - Para que um clube seja considerado em mora nos termos deste artigo, cabe ao credor notificar, por escrito, concedendo um prazo mínimo de 10 (dez) dias para que este cumpra suas obrigações financeiras em atraso.
§3º - Exaurido o prazo, o credor, juntando os respectivos documentos comprobatórios do descumprimento das obrigações financeiras, fará a formal comunicação à CNRD, que pode ordenar o pagamento da obrigação e impor ao clube inadimplente as sanções previstas em seu Regulamento até o efetivo cumprimento.
§4º - As sanções ao clube devedor podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente.
§5º - A reincidência de mora financeira pelo clube devedor é considerada agravante, importando sanção mais grave.
§6º - A proibição de registrar novos atletas pode ser objeto de suspensão condicional da pena e, neste caso, cabe à CNRD fixar um período de seis (6) meses a dois (2) anos para o sursis desportivo.
§7º - Se durante o transcurso do prazo do sursis desportivo o clube beneficiário vier a cometer outra infração tipificada no caput deste artigo, a suspensão da pena será automaticamente revogada, importando imediata vedação de registrar novos atletas, sem prejuízo da imposição de sanção pela nova infração cometida.
§8º - A imposição de sanções com base neste artigo não caracteriza por si só justa causa para a rescisão do contrato entre um atleta, técnico de futebol ou membro de comissão técnica e um clube.
§9º - Na hipótese de rescisão unilateral da relação contratual, as disposições deste artigo aplicar-se-ão sem prejuízo de outras medidas previstas na legislação nacional.” (grifei)
Ainda na seara dos regulamentos desportivos aplicáveis, colho as possíveis sanções que podem ser aplicadas às pessoas jurídicas que atuam no futebol nacional pela Câmara Nacional de Resolução de Disputas da CBF (CNRD), conforme regulamento próprio(https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202209/20220923095301_64.pdf – acesso em 11/04/23), como se pode verificar do artigo 40 daquele regramento:
“Art. 40. No exercício de suas funções, a CNRD pode aplicar as seguintes sanções, cumulativamente ou não:
(...)
§ 3º – Às pessoas jurídicas, no que couber:
I – bloqueio e repasse de receita ou premiação econômica que tenha direito de receber da CBF ou de federação;
II – devolução de premiação econômica que a parte tenha recebido por conquista em competição organizada pela CBF;
III – proibição de registrar novos atletas, por período determinado não inferior a seis meses nem superior a dois anos;
IV – proibição de registrar novos atletas por um ou dois períodos completos e, se for o caso, consecutivos de registro internacional;
V – suspensão dos efeitos ou cancelamento do Certificado de Clube Formador;
VI – desfiliação ou desvinculação, respeitada a legislação nacional.” (grifei)
No mesmo sentido caminha o Regulamento Específico da Competição (REC) do Campeonato Brasileiro de futebol 2023 (https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202302/20230214191258_96.pdf – acesso em 03/06/23):
“Art. 21 – O Clube que, por período igual ou superior a 30 (trinta) dias, estiver em atraso com o pagamento de remuneração, devida única e exclusivamente durante o CAMPEONATO, conforme pactuado em Contrato Especial de Trabalho Desportivo, a atleta profissional registrado, ficará sujeito à perda de 3 (três) pontos por partida a ser disputada, depois de reconhecida a mora e o inadimplemento por decisão do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD).
§ 1º – Ocorrendo atraso, caberá ao atleta prejudicado, pessoalmente ou representado por advogado constituído com poderes específicos ou, ainda, por entidade sindical representativa de categoria profissional, formalizar comunicação escrita ao STJD, a partir do início até 30 (trinta) dias contados do encerramento do CAMPEONATO, sem prejuízo da possibilidade de ajuizamento de reclamação trabalhista, caso a medida desportiva não surta efeito e o clube permaneça inadimplente.
§ 2º – Comprovado ser o Clube devedor, conforme previsto no caput deste
artigo, cabe ao STJD conceder um prazo mínimo de 15 (quinze) dias para que o Clube inadimplente cumpra suas obrigações financeiras em atraso, de modo a evitar a aplicação da sanção de perda de pontos por partida, sem prejuízo às penalidades administrativas previstas no RGC.
§ 3º – A sanção a que se refere o caput deste artigo será sucessiva e cumulativamente aplicada em todas as partidas do CAMPEONATO que venham a ser realizadas enquanto perdurar a inadimplência.
§ 4º – Caso inexista partida a ser disputada pelo Clube inadimplente quando da imposição da sanção, a medida punitiva consistirá na dedução de 3 (três) pontos dentre os já conquistados no CAMPEONATO.
§ 5º – A regra valerá a partir do início do CAMPEONATO até 30 (trinta) dias após o seu término, não se considerando débitos trabalhistas anteriores e posteriores.
§ 6º – Esta norma é aplicável sem prejuízo do disposto no art. 64 do RNRTAF, resultante de regra vinculante e obrigatória da FIFA, conforme circular nº 1468/2015, de 23/02/2015.” (grifei)
Regras como as transcritas vem se repetindo, no decorrer dos anos, nos regulamentos desportivos, o que demonstra a preocupação das entidades de administração do desporto em garantir meios para resguardar a moralidade e o adimplemento financeiro dos clubes durante as competições, inclusive com o risco de perda de pontos. Sobre regramentos sancionatórios como os já citados, novamente se manifestou o Exmo. Desembargador Francisco Giordani, no artigo já mencionado:
“Medidas como essas são importantes, para que se evite um, digamos assim, dumping desportivo e/ou “drible” (e não no sentido emocionante/positivo do vocábulo) nos demais participantes de uma competição, em suas regras e nos próprios atletas que compõem seu plantel, evitando-se, outrossim, pelo descompasso de forças que se apresenta como provável corolário desse proceder, reste prejudicada/magoada, a graça do futebol, por não serem mais infinitas suas possibilidades.”
Ou seja, como se vê, os times de futebol, no âmbito desportivo, podem estar sujeitos a sanções desportivas que podem levar a suspensão do direito de registrar novos atletas, perda de pontos e até mesmo à desfiliação ou desvinculação da entidade de organização do desporto, o que implicaria em dizer que os clubes podem até ser impedidos de participar de novas competições oficiais a serem organizadas pela CBF, pela liga que participem ou até mesmo pela sua federação de vinculação. Todavia, é preciso notar, na linha do artigo 217, I, da CRFB-88, que a competência para a aplicação de tais sanções, relacionadas à disciplina e competições desportivas, são das Entidades de Administração do Desporto e da Justiça Desportiva.
Nesta esteira, um dos órgãos legitimados para a abertura de procedimento sancionador na CNRD, haja vista a situação potencial de quebra de “fair-play financeiro”, é a DRT (Diretoria de Registro, Transferência e Licenciamento da CBF), segundo o artigo 13 do Regulamento da CNRD:
“Art. 13 A DRT ou qualquer jurisdicionado da CNRD pode apresentar requerimento por escrito para abertura de procedimento sancionador, cabendo ao Presidente da CNRD distribuí-lo à Divisão sobre Regulação para apreciação da matéria e designar o relator. A denúncia deve conter obrigatoriamente:” (grifei)
Já o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol diz, em seu artigo 54:
Art. 54. Em processos decorrentes de notícias de irregularidade contratual formuladas por atletas, clubes, entidades sindicais e as admitidas na legislação, que versem sobre inadimplência salarial e de outros vencimentos, descritas na legislação e nos Regulamentos das entidades de administração, o Vice-Presidente do Tribunal, receberá a noticia, e mandará o noticiado apresentar defesa prévia em 05 (cinco) dias com documentação, comprovando o adimplemento. Apresentada a defesa prévia, será dada vista ao noticiante pelo mesmo prazo. (grifei)
Observa-se que o Regimento Interno do STJD do futebol também classificou como legítimas as notícias de inadimplementos dos clubes de futebol quando “admitidas na legislação”. Ora, o artigo 139, IV, do CPC, com a chancela vinculante do E. STF, abriu a possibilidade do juiz do trabalho, em medida atípica de execução, cientifique a Justiça Desportiva de eventuais inadimplementos dos clubes decorrentes de processos na Justiça do Trabalho. Entendemos, todavia, observado o devido processo legal, que a continuidade de eventual procedimento sancionador dos clubes perante as entidades de Administração do Desporto e a Justiça Desportiva, e sua eventual penalidade desportiva, são de competência material daquelas instituições, por expressa previsão constitucional. Isto porque as relações entre os clubes e as Entidades de Organização do Desporto e a Justiça Desportiva não podem se classificar como relações de trabalho, na forma do art. 114 e incisos da CRFB-88. Desta forma, por uma questão de competência material, que precede a aplicação do art. 139, IV, do CPC, entendemos ser vedado ao juiz do trabalho, por exemplo, determinar medidas diretas que impeçam os clubes de futebol de registrar novos atletas; determinar que os clubes percam pontos em competição oficial que participem organizadas pela CBF ou por liga própria; bem como determinar a desfiliação ou suspensão de um clube de determinada federação, dentre outras medidas que invadam a seara de competência da Justiça Desportiva ou das entidades de administração do desporto. Tal entendimento de constitucionalidade da autonomia desportiva das entidades de Administração do Desporto já foi corroborado, mutatis mutandis, pelo próprio E. STF, na ADI 5.450, de relatoria do Exmo. Ministro Alexandre de Moraes, quando lei heterônoma estatal pretendeu, indevidamente, adentrar a seara autônoma das competições e disciplinas desportivas. A referida ADI foi assim ementada (fonte: www.stf.jus.br – acesso em 10/07/23):
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. AUTONOMIA DAS ENTIDADES DESPORTIVAS. LEI 13.155/2015. PROGRAMA DE RESPONSABILIDADE FISCAL DO FUTEBOL BRASILEIRO – PROFUT. Atuação legítima do legislador visando à probidade e à transparência da gestão democrática e participativa do desporto. Constitucionalidade. Impossibilidade de exigência de regularidade fiscal como requisito técnico para habilitação em competições. Sanção política. Inconstitucionalidade. Procedência parcial. 1. As condições impostas pela Lei 13.155/2015 para a adesão e manutenção de clubes e entidades desportivas no Programa de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro, PROFUT, mostram-se necessárias e adequadas para a melhoria da gestão responsável e profissional dessas entidades, afirmada a relevância e o interesse social do futebol e de outras práticas desportivas como patrimônio público cultural (art. 216 da CF). 2. Não bastasse o caráter voluntário da adesão, as exigências estabelecidas no PROFUT atenderam ao princípio da razoabilidade, uma vez que respeitadas as necessárias proporcionalidade, justiça e adequação entre os dispositivos impugnados e as normas constitucionais protetivas da autonomia desportiva, preservando-se a constitucionalidade das normas, pois a atuação do legislador visando à probidade e à transparência da gestão do desporto foi legítima, estando presentes a racionalidade, prudência, proporção e a não arbitrariedade. 3. O artigo 40 da norma impugnada, na parte em que altera o art. 10, §§ 1º, 3º e 5º da Lei 10.671/2003, ao impor o atendimento de critérios de âmbito exclusivamente fiscal ou trabalhista para garantir a habilitação nos campeonatos, independentemente da adesão das entidades desportivas profissionais ao PROFUT, podendo acarretar o rebaixamento de divisão dos clubes que não cumprirem tais requisitos, caracteriza meio indireto e coercitivo de cobrança de tributos e outras obrigações (“sanção política”), pelo que é inconstitucional. 4. Medida Cautelar confirmada e Ação Direta julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade do artigo 40 da Lei 13.155/2015, na parte em que altera o art. 10, §§ 1º, 3º e 5º, da Lei 10.671/2003.” (grifei)
Consideradas essas situações constatadas em inúmeras ações trabalhistas em trâmite no país, todas envolvendo clubes de futebol perante a Justiça do Trabalho, mostra-se de todo louvável, com lastro no art. 139, IV, do CPC, que os juízes trabalhistas oficiem as entidades de administração do desporto e da Justiça Desportiva, seja a CBF ou o STJD, para a análise, por parte daquelas entidades e das Procuradorias legitimadas vinculadas, acerca da possibilidade de abertura de procedimento sancionador dos clubes inadimplentes, perante a CNRD da CBF ou perante o STJD, observada a independência, autonomia e competência dos órgãos próprios da esfera desportiva administrativa e da Justiça Desportiva (art. 217, I, da CRFB-88).
De igual modo, seria salutar o estabelecimento de convênios desta natureza entre a Justiça do Trabalho e as entidades de organização do desporto e da Justiça Desportiva. Destaca-se que tais providências podem ser feitas de ofício pelo Judiciário, com lastro no Poder de Cautela dos juízos trabalhistas na busca da máxima efetividade da prestação jurisdicional, autorizado pelo disposto nos arts. 139, IV e 297 do CPC, além do disposto no art. 765 da CLT, observando-se a independência, autonomia e competência dos órgãos desportivos na análise de tais informações disponibilizadas. Deve ser considerado, ainda, o que vem acontecendo na realidade do futebol brasileiro, tudo com fincas a se manter a moralidade e o adimplemento das remunerações dos atletas, treinadores e membros das comissões técnicas dos times de futebol, como medida básica de governança e manutenção do fair play (jogo limpo) financeiro.
Por fim, chega-se à conclusão que a sanção desportiva é o instrumento sancionador mais persuasivo que se pode ter em relação ao problema do endividamento dos clubes de futebol para com os seus atletas, membros de comissão técnica e treinadores. Nesta seara, a Justiça do Trabalho detém a prerrogativa de provocar as entidades de administração do desporto e da Justiça Desportiva, para, preservando-se a competência, autonomia e independência daquelas entidades, se verificar a possibilidade de se iniciar e implementar procedimento sancionador desportivo. Ou seja, a Justiça do Trabalho, por limitações constitucionais de competência, não pode se fazer substituir aquelas entidades, mas pode, legitimamente, provocá-las para que se avalie eventual início e implementação de sanção desportiva. Desta forma, respondendo à provocação inicial do título deste breve artigo: sim, deixar de pagar salários pode significar a perda de campeonatos.