Flávio de Albuquerque Moura[1]
1. AMBIGUIDADE E PROTAGONISMO DO TEMA
O título foi propositadamente encartado em duplo sentido, na primeira e segunda assertiva, ao passo que a sua conclusão individual é que definirá se o dispositivo constitucional provém de eficácia ou não, e se é possível compreender uma Justiça Desportiva ilhada do ordenamento jurídico pátrio, ou se sua especificidade temática a torna única dentro do sistema de controle normativo.
O protagonismo do tema é sempre atualizado e especialíssimo quando o ramo do direito em estudo é o Desportivo, já que a norma constitucional retratada especializou a atuação da Justiça Desportiva para solução dos conflitos que envolvam as ações “relativas à disciplina” e “às competições desportivas”, sem contudo, categorizar a definitividade das decisões administrativas prolatadas em seu seio doméstico. E seria necessário?
O regramento constitucional é direto e objetivo, qual seja: “§ 1º. O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.” Não há qualquer elemento subjetivo que obscureça sua clareza meridiana. A dicção legislativa impõe um pressuposto processual para pretensão da tutela jurisdicional estatal, que é o esgotamento das instâncias administrativas da Justiça Desportiva, seja pelo percurso das instâncias, ou pelo exaurimento do prazo máximo de 60(sessenta) dias.
A perspectiva de uma impossibilidade do controle estatal dos julgados administrativos é que move a construção do presente texto, sob uma ótica crítica e comparada das correntes que absorvem e repudiam o princípio constitucional da inafastabilidade da prestação jurisdicional insculpida no Art. 5º, inc. XXXV (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito) quando sobreposto às decisões da Justiça Desportiva.
Se a Carta Política Cidadã de 1988 em seu art. 217, §1º tem eficácia plena ou contida, não há dúvida de que é impossível mitigar o comando constitucional de acesso ao Judiciário, como pedra fundamental de garantia dos cidadãos, nos próprios dizeres do §1º do Art. 5º (§ 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.)
Acaso a interpretação seja outra, de que a norma constitucional não desfrute de eficácia, pois dependente de regulamentação (eficácia limitada), ou até mesmo se corporifique como uma norma programática, há que se admitir a soberania da Justiça Desportiva como ente provedor da coisa julgada formal e material, até que seja regulamentada por normas infraconstitucionais.
Dentro desse espectro de análise que se insere o presente artigo jurídico, e diante de outras circunstâncias ainda mais peculiares que aqui serão desenvolvidas, peço permissão ao leitor para ingressar de logo naquilo que é nevrálgico, ou seja, a tutela estatal pode ou não re(discutir) todas as matérias apreciadas ou passíveis de análise na Justiça Desportiva?
2. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA JUSTIÇA DESPORTIVA
O Direito Desportivo alçou o patamar constitucional nos dizeres indeléveis do Art. 217 e seus incisos e parágrafos, o que representou um avanço normativo sem fronteiras, não só no campo desportivo, mas especialmente no aspecto social, cultural, econômico e jurídico, fomentando o desporto como instrumento de inserção da cidadania, formação educacional e propagação do lazer, com uma Justiça Desportiva própria, autônoma e independente.
Ao que importa de forma específica nesse estudo é saber se a autonomia inserida no seu inc. I sobre os entes desportivos (a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;) qualificou a Justiça Desportiva a soberania de seus julgados.
Em primeiro plano, imprescindível se torna repisar as matérias que são de competência da Justiça Desportiva (ações relativas à disciplina e às competições desportivas), e uma vez definidas, avaliar o texto constitucional acerca das condições e pressupostos para a efetivação da jurisdição estatal sobre os mesmos temas.
Acredito que o melhor ponto de partida para entender o que o constituinte disse ou pretendeu dizer no art. 217, §1º é ouvir, ou melhor dizendo, ler as lições daquele que embrionou o texto e só não assinou porque não era um constituinte. O Prof. Álvaro Melo Filho[2], in verbis:
Esclareça-se que o art. 217 da Lex Magna, no seu §1º, não proíbe, mas condiciona a que se esgotem, previamente, as vias da Justiça Desportiva para posterior acesso ao Poder Judiciário. Aliás, a doutrina jurídica brasileira sempre lutou para viabilizar, na prática, esse permissivo constitucional, adaptando-o aos interesses do desporto, com o que todos ganharão: a Justiça Estatal, que passará a conhecer somente daquelas controvérsias insuperáveis no plano pré-processual, quando a decisão da Justiça Desportiva tenha deixado a desejar, seja porque não reparou a lesão ao direito individual, seja porque ela mesma se configure numa tal lesão, seja porque ultrapassado o prazo para a prolação do decisório; as partes ganharão, porque verão a pendência decidida com maior celeridade e, por que não dizer, com mais discrição, evitando-se alarde normalmente emprestado às questões desportivas quando chegam à Justiça Estatal; ganhará a Justiça Desportiva, que terá seu prestígio reforçado diante de seus jurisdicionados.
Esse pequeno trecho de sua enriquecida obra é suficiente para identificar quais elementos de suporte valorativo construíram a inteligente, abrangente e eficiente norma constitucional, cuja mente visionária do redator foi precisa para acalentar todos os atores desse enorme e incomensurável cenário desportivo, não só os jurisdicionados mas os entes de jurisdição (administrativa e estatal).
Passados quase trinta anos da Carta Política Cidadã vê-se claramente que o texto constitucional em análise teve seu propósito efetivamente alcançado, sendo verdadeiras migalhas os casos encontrados que alçaram o voo da jurisdição estatal, nesse enorme campo fértil de sementes litigiosas espalhadas aos quatro cantos do continente-Brasil, dirimidos quase em sua totalidade, com a exclusividade da jurisdição desportiva.
Penso que não há tergiversações entre os “jus desportistas” sobre os benefícios de uma Justiça Desportiva especializada, colegiada e hierárquica, cuja finalidade foi exatamente de garantir julgamentos céleres e qualificados, pois constituída sob os pilares de ritos sumários, com procedimentos informais e integrada por cidadãos de notório saber jurídico e conduta ilibada, como assim reproduz a Lei 9.615/98 em seus arts. 52 a 55.
O que não acredito ser possível é realizar uma interpretação dogmática sobre institutos jurídicos, especialmente de nível constitucional, com a construção meramente finalística de conceitos extrajurídicos, como p.ex., que a submissão dos processos desportivos a tutela estatal colocaria em risco a credibilidade da autonomia da Justiça Desportiva. Ora, a norma jurídica é cogente, pressupõe legitimidade, executividade e espelha a vontade da própria sociedade, que de forma direta ou através dos seus representantes, a criou para evitar ou dirimir conflitos sociais.
O art. 217, §1º da lex fundamentalis estabeleceu de forma imperativa que as querelas desportivas só poderiam ser propostas na Justiça Estatal após o exaurimento das vias administrativas integrantes da Justiça Desportiva; sem qualquer exceção temática, logo, não há como se fundamentar de forma colidente ao texto constitucional com bases teóricas sem juridicidade.
E é nesse cenário, sem contudo ser exauriente, que pretendo contribuir com o estudo e divulgação das correntes doutrinárias que tratam sobre o tema, trazendo a baila não só uma opinião pessoal, mas a abalizada doutrina especializada e as decisões jurisprudenciais que já se debruçaram sobre o tormentoso, mas palpitante estudo da Justiça Desportiva no ordenamento jurídico pátrio.
3. A NATUREZA JURÍDICA DA JUSTIÇA DESPORTIVA
Antes de se debruçar sobre a natureza jurídica, é imprescindível contextualizar a vestimenta constitucional que foi dada não só a Justiça Desportiva, mas a todas as entidades desportivas, dirigentes e associações que integram o Desporto, nos termos do Art. 217, inc. I, como já havia ressaltado antes.
Nesse sentir, a transcrição dos arts. 13, parágrafo único e 16, ambos da Lei 9.615/98(Lei Pelé) se faz obrigatória, para então se compreender a natureza jurídica de todos os entes integrantes do Sistema Nacional do Desporto.
Do Sistema Nacional do Desporto
Art. 13. O Sistema Nacional do Desporto tem por finalidade promover e aprimorar as práticas desportivas de rendimento.
Parágrafo único. O Sistema Nacional do Desporto congrega as pessoas físicas e jurídicas de direito privado, com ou sem fins lucrativos, encarregadas da coordenação, administração, normatização, apoio e prática do desporto, bem como as incumbidas da Justiça Desportiva e, especialmente:(grifos fora do texto original)
(Redação dada pela Lei nº 12.395, de 16.03.2011, DOU 17.03.2011)
Art. 16. As entidades de prática desportiva e as entidades de administração do desporto, bem como as ligas de que trata o art. 20, são pessoas jurídicas de direito privado, com organização e funcionamento autônomo, e terão as competências definidas em seus estatutos ou contratos sociais. (grifos fora do texto original)
(Redação dada ao caput pela Lei nº 13.155, de 04.08.2015, DOU - Ed. Extra de 05.08.2015, conversão da Medida Provisória nº 671, de 19.03.2015, DOU de 20.03.2015)
Da leitura direta do texto se abstrai das partes grifadas a natureza jurídica dos entes integrantes do Sistema Nacional do Desporto, dentre eles, o que vale destacar, são as entidades de administração (nacional e regional), e os órgãos julgadores integrantes da Justiça Desportiva, ou seja, são pessoas dotadas de personalidade jurídica de direito privado.
Essa conotação é fundamental para se entender qual a natureza jurídica das decisões da Justiça Desportiva, fazendo-se de logo uma distinção insofismável entre os órgãos integrantes da Justiça Desportiva e os órgãos administrativos que compõem a atividade vinculada do estado, em seus mais diversos segmentos de atuação, como p.ex., Tribunais Administrativos Disciplinares, Tribunais Fiscais, Tribunais de Fiscalização Ambiental, Agências Reguladoras, dentre inúmeros outros, todos submetidos aos princípios constitucionais vocacionados a administração pública(Art. 37 da CF).
Vale dizer, sob o olhar constitucional e legal, a revisão de uma decisão administrativa da Justiça Desportiva não se amolda a decisão emanada dos órgãos integrantes da Administração Pública, logo, a eventual tese sufragada de que o controle jurisdicional estatal sobre as decisões da Justiça Desportiva se limitariam ao campo da legalidade (deformidades procedimentais) ou das garantias constitucionais do devido processo legal (contraditório e ampla defesa) não tem qualquer suporte consubstanciado nas normas de direito administrativo puro[3], ao passo que não há que se falar em mérito de ato administrativo discricionário.
Se já não fosse suficiente a afirmação imperativa da natureza jurídica dos órgãos integrantes da Justiça Desportiva, a regra negativa é ainda mais esclarecedora quanto a desconfiguração de natureza pública, nos dizeres do art. 82 da Lei 9.615/98 (Os dirigentes, unidades ou órgãos de entidades de administração do desporto, inscritas ou não no registro de comércio, não exercem função delegada pelo Poder Público, nem são consideradas autoridades públicas para os efeitos desta Lei.) (destaques pelo subscritor)
É inquestionável a relevância pública e social da Justiça Desportiva, mas não é possível transfigurar os institutos e adaptar os conceitos as finalidades individuais e egoísticas, e nesse caso, a definição da natureza jurídica privada da Justiça Desportiva está literalmente desenhada no Art. 13 da Lei 9.615/98, apesar do mesmo diploma legal enaltecer a função da organização desportiva do País, considerando-a de elevado interesse social e integrante do patrimônio cultural brasileiro[4], o que é incontestável
4. PROLEGÔMENOS DA JUSTIÇA DESPORTIVA
A inserção da Justiça Desportiva no ambiente da Carta Magna, como único país no mundo assim fazê-la, elevou sobremaneira essa atividade nobre, vocacionada e árdua para aqueles que se doam por paixão ao Direito Desportivo, sem remuneração, com concorrência direta e conflitante aos interesses profissionais e familiares de cada membro dos órgãos integrantes dos Tribunais Desportivos vinculados as entidades de administração das mais diversas modalidades esportivas.
Reconhecer sua magnitude é admitir sua importância para a segurança jurídica das normas desportivas aplicadas igualitariamente a todos, com o fim proposital de manter hígidos os princípios basilares do Direito Desportivo, quais sejam, o equilíbrio competitivo (teórico) e a imprevisibilidade de resultados (prática desportiva).
É inegável que o fino trato com a matéria pela Justiça Desportiva está longe de ser assim tratado nas lides estatais, mas esse pressuposto não é suficientemente capaz de justificar a impossibilidade do acesso ao Judiciário quanto aos temas meritórios decididos na via administrativa, pois se assim o fosse, também ser-lhe-ia em vários outros ramos novos do direito, ou de grande especificidade, como direito digital, direito marítimo, direito florestal, direito médico, dentre outros.
O princípio da ubiquidade da justiça não pode ser mitigado sob o argumento de que os magistrados eventualmente não estariam preparados para decidir um conflito de interesses, seja qual for o tema que lhe seja submetido à apreciação. Essa previsibilidade é antijurídica, ao passo que a própria constituição tratou de adjetivar as competências materiais especializadas de todos órgãos que compõe o Poder Judiciário, razão pela qual se insere a garantia constitucional da proteção judiciária ampla e irrestrita (Art. 5º, inc. XXXV).
Aliás, a finalidade do art. 217, §1º da CF nunca foi de excluir a possibilidade de submeter ao Poder Judiciário as matérias já decididas em última ou única instância da Justiça Desportiva, ao revés, foi filtrar e melhor qualificar as eventuais e restritas hipóteses em que o jurisdicionado pretenda exercer seu direito protestativo de provocar a chancela jurisdicional do estado.
E não é diferente o entendimento do Prof. Álvaro Melo Filho[5], quando em vários trechos de sua obra já citada, pontifica o que pretendeu, ao sugerir a redação do art. 217, §1º da Carta Magna, in verbis:
Acresça-se que o §1º do art. 217 da Lei Maior não tem o condão de excluir ou interditar o conhecimento da matéria desportiva pela Justiça Estatal, o que seria manifestamente inconstitucional, até porque a imposição de uma sanção derivada da infração de uma regra de jogo pode resultar numa lesão econômica ou moral para um atleta, dirigente ou entidade desportiva.
Ressalte-se, outrossim, que esse dispositivo constitucional não impede o acesso das entidades desportivas ou contra elas no plano do Poder Judiciário. Contudo, trata-se de preceito que objetiva estimular a prévia e salutar decisão doméstica da controvérsia desportiva, na esfera da Justiça Desportiva, sem, no entanto, conferir definitividade às decisões prolatadas, que não se revestirão, por isso mesmo, do “final enforcing power”, tão peculiar à coisa julgada.
Significa dizer que os §§1º e 2º do art. 217, evidentemente, não acabam, mas limitam e restringem a interferência do Poder Judiciário nos desportos, sem aniquilar a garantia constitucional que assegura o acesso das pessoas físicas e jurídicas à Justiça Estatal pra defesa de seus direitos.
A norma constitucional, por tudo isso, vai exigir da magistratura maiores e melhores conhecimentos da legislação desportiva, principalmente para saber se foram ou não esgotadas as instâncias da Justiça Desportiva.
Não consigo visualizar qualquer dificuldade quanto ao entendimento de que as matérias afetas a Justiça Desportiva, uma vez satisfeitos os pressupostos constitucionais de exaurimento das instâncias administrativas e/ou esgotamento do prazo máximo de 60(sessenta) dias para a decisão final, poderão ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário.
Os efeitos da norma constitucional (art. 217, §1º), sob a ótica dogmática é de aplicação plena e imediata, ao passo que não se submete a nenhuma contenção de regulamentação, contudo, dentro do contexto da lex sportiva transnacional outros problemas e reflexos pragmáticos haverão de ser explorados, para então se entender o motivo da dúvida sobre a (In)eficácia do art. 217§1º do Texto Supremo Pátrio.
5. A ORDEM JURÍDICA INTERNA E AS NORMAS DESPORTIVAS INTERNACIONAIS
Há aqui, sem sombra de dúvida, o maior problema a ser resolvido no âmbito prático de eventuais hipóteses da postulação ao Poder Judiciário de demandas com suporte no art. 217, §1º da Carta Política Nacional.
Servindo de exemplo o futebol, por suas razões óbvias de ser o esporte mais cultuado no país e de relevante interesse e repercussão social e educacional, ccomento os arts. 59 e 60 do Estatuto da FIFA, entidade internacional máxima do futebol, a qual a CBF está volitivamente associada, os quais colidem frontalmente com o dispositivo constitucional em estudo, ao passo que reconhecem o CAS (Court of Arbitration for Sport) como órgão judicial independente ao qual devem se submeter todas as confederações, membros e ligas, proibindo expressamente a busca da justiça comum para dirimir os conflitos desportivos, salvo se o próprio estatuto da FIFA assim excepcionar.
E mais, as normas estatutárias internacionais exigem que as entidades de administração (confederações e federações) a ela filiadas, prevejam em seus estatutos nacionais a observância e cumprimento das diretrizes e decisões da FIFA (Fédération Internationale de Football Association).
A resolução dessa antinomia jurídica ultrapassa as hipóteses dogmáticas de solução dos conflitos normativos, pois não há critério eficaz, nem mesmo os “metacritérios” indicados pela Profa. Maria Helena Diniz[6], ao passo que as normas confrontantes não se resolvem, diante da ausência de foro internacional próprio.
No dizer do Prof. Álvaro Melo Filho[7], “Com efeito, nem a ONU, nem o CIO, nem o Tribunal de Haia, nem o Papa têm força e competência jurídicas para apreciar a matéria e fazer com que a FIFA deixe de aplicar punições da espécie e dobre-se às exigências de outras autoridades ou órgãos internacionais.”
É verdade, contudo, que essa normatização transnacional e de imperatividade quase absoluta não encontra qualquer guarida em nosso seio constitucional, e sua antijuridicidade é patente, sendo nula de pleno direito dentro do ordenamento jurídico pátrio, mas como simplesmente desconsiderar os efeitos “práticos” dessa aberrante inconstitucionalidade!
O reflexo de sua impositividade é facilmente observada e sentida pelos partícipes da ordem desportiva, quando se tem no Estatuto da CBF, em seu art. 1º, §2º a seguinte disposição:
§2º Todos os membros, órgãos e integrantes da CBF, assim como clubes, árbitros, treinadores, médicos e outros dirigentes pertencentes a clubes ou ligas das federações filiadas devem observar e fazer cumprir no Brasil os estatutos, diretrizes, decisões e o Código de Ética da Fédération Internationale de Football Association – FIFA e da Confederacion Sudamericana de Futbol – CONMEBOL.
Mais uma vez se faz necessário embevecer-se nas ricas lições do Prof. Álvaro Melo Filho[8], que sempre surpreende e dinamiza os institutos de Direito Desportivo, ao conectá-los com os demais ramos do direito, na inevitável transmutação dos dogmas jurídicos, gerada pelo mundo globalizado e modernização dos conceitos, como se vê, in verbis:
É comum definir-se a soberania como o poder de mando de última instância, supremo, exclusivo e não derivado de outro a ele superposto, numa sociedade política organizada que determina as suas leis e o seu regime de governo.
Originalmente, a soberania qualificava-se como absoluta, originária, perpétua, inalienável, imprescritível e indivisível. Todavia, é inegável que tal concepção moldada no Século XVI vem sofrendo um crescente processo de esmaecimento ou de erosão conceitual. E, mais recentemente, com a globalização econômica e a crise regulatória do Estado (regulatory failures), a soberania, no seu conceito clássico, vem perdendo espaço para entidades internacionais (ONU, OMC, EU, FIFA etc.).
Nessa linha de raciocínio, perde sentido o debate se a soberania formal vai desaparecer, ou não. O que importa é a soberania real, posta em questão, na medida em que os Estados deixam de ser ativos e passam a ser reativos. Ou seja, não são os Estados que dizem, por exemplo, aos órgãos desportivos internacionais o que devem fazer, são estes que dizem aquilo que os países filiados tem obrigação de fazer, sob pena de desfiliação.
Tércio Sampaio[9] tem grande preocupação com a dogmática, dedicando grande parte dos seus escritos ao assunto, sendo que ele nos remete a valores, expondo:
... De um modo mais genérico, podemos dizer (cf. Esser, 1952, v. 5:1) que, no sistema construído pela ciência dogmática, “os conceitos que são na aparência, de pura técnica jurídica” ou “simples parte do edifício” só adquirem o sentido autêntico se referidos ao problema da justiça. Diríamos que, por isso, ocultam por detrás de uma análise quase-lógica, elementos axiológicos ou valorativos.
De toda sorte, essa colidência (antinomia jurídica) entre a norma internacional da FIFA (Art. 59) e a norma interna de patamar constitucional (Art. 217, §1º) recebe defesas contrapostas, com argumentos ponderáveis de um lado e de outro, no que tange a juridicidade da norma estatutária, e sobreposição a norma interna, o que se resume em ligeiros tópicos:
A) Fundamentos Favoráveis
ü A voluntariedade de associação e aceitação das regras estatutárias;
ü A disponibilidade do direito em voga;
ü Interiorização das normas desportivas internacionais nas federações nacionais;
ü Universalização de entendimentos entre as federações internacionais sobre tema específico de direito desportivo
B) Fundamentos Contrários
ü Injuridicidade por ofensa a preceito constitucional;
ü Inexistência de voluntariedade renunciativa às regras estatutárias;
ü Invalidade da cláusula compromissória de renúncia a tutela estatal;
ü Renúncia preventiva abstrata de preceito constitucional;
ü Indisponibilidade do direito à proteção judiciária;
A (In) eficácia do Art. 217, §1º da Carta Magna deverá ser analisada de forma valorativa, empírica e reflexiva, quando em jogo estiverem interesses de clubes, atletas e dirigentes de projeções internacionais, sob pena da dogmática jurídica acerca dos entes dotados de soberania formal combalir frente aos interesses das organizações transnacionais de soberania real.
6. AS REGRAS LEGAIS SOBRE PROCESSOS ADMINISTRATIVOS ESTATAIS E UMA ANALOGIA COM O ART. 52 DA LEI 9.615/98(LEI PELÉ)
Não há como inadmitir a possibilidade da apreciação pelo Poder Judiciário das lides desportivas, sob o fundamento de que a Justiça Desportiva emana uma decisão administrativa, cujo conteúdo se qualificaria como um ato administrativo discricionário, e portanto, inviolável quanto ao juízo de oportunidade e conveniência, na esteira da corrente predominante dos “jus administrativistas”.
São conceitos inconciliáveis, primeiro porque a Justiça Desportiva não integra a administração pública, e mesmo que a ela pertencesse, essa avaliação também teria que ser mitigada, ao passo que nem toda decisão administrativa dos órgãos integrantes da atividade vinculada do estado irradiam os idêntcos efeitos jurídicos.
Veja-se por exemplo os regramentos da Lei 9.784 de 29.01.99, que compreende o processo administrativo disciplinar no âmbito da Administração Pública Federal, e o Decreto 70.235 de 06.03.1972 que disciplina o Processo Tributário Administrativo.
No que cabe ao estudo específico e aproveitamento de formação de raciocínios, transcrevo apenas aquilo que servirá de perspectiva analógica:
Lei 9.784/99
Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos. (grifos fora do texto original)
Decreto 70.235/72
Art. 43. A decisão definitiva contrária ao sujeito passivo será cumprida no prazo para cobrança amigável fixado no artigo 21, aplicando-se, no caso de descumprimento, o disposto no § 3º do mesmo artigo.
§ 1º. A quantia depositada para evitar a correção monetária do crédito tributário ou para liberar mercadorias será convertida em renda se o sujeito passivo não comprovar, no prazo legal, a propositura de ação judicial. (grifos fora do texto original)
Como se viu, são duas formas de tratar a natureza jurídica da decisão final administrativa. No processo administrativo disciplinar, o ato discricionário só pode ser, via de regra, revogado pelo juízo da conveniência e oportunidade, no sentir da própria administração pública, já as exigências fiscais, tratadas em procedimento administrativo próprio, tem suas decisões amplamente revisadas em conteúdo e forma pelo Judiciário.
Sob essa simples ótica, mesmo que fosse possível comparar a decisão da Justiça Desportiva aos atos administrativos, por si só, não haveria como fixar premissas de sua natureza discricionária ou vinculativa.
Aprofundando o tópico e já comparando com a disposição do art. 52, §§1º e 2º da Lei 9.615/98[10], as decisões da Justiça Desportiva não espraiam qualquer efeito vinculativo ao Poder Judiciário, que poderá convalidar ou anular todo e qualquer efeito da decisão proferida no juízo pré-processual.
Há dois pontos que reputo importantes serem analisados acerca do conteúdo destes dispositivos referenciados, sendo o primeiro a amplitude da expressão “termos gerais do direito”, e segundo, o que significaria “efeitos desportivos validamente produzidos”.
Eu interpreto “termos gerais do direito” como fundamentos genéricos do campo da licitude, ou seja, a percepção constitucional de que todos os meios e recursos, mediante a produção de provas lícitas, são admitidos para o exercício pleno da prestação da tutela jurisdicional, jungindo-se os incs. XXXV, LV e LVI do art. 5º da CRFB.
No que tange aos “efeitos desportivos validade produzidos”, há uma bifurcação de tradução interpretativa. Na primeira, me escoro no “padrinho da norma”, Prof. Álvaro Melo Filho[11]:
Pode parecer, a priori, que o legislador esteja realçando que as decisões oriundas dos Tribunais de Justiça Desportiva preponderam e sobrepõem-se àquelas provenientes do Poder Judiciário o que, em última análise, seria estimular os entes desportivos e atletas a descumprir, desobedecer e fazer tabula rasa das sentenças e acórdãos proferidos sobre matéria desportiva no âmbito do Poder Judiciário.
Contudo, uma leitura mais atenta aponta que o ditame legal cogita apenas de recurso ao Judiciário ou do princípio da impugnabilidade. Vale dizer, refere-se ao ingresso da ação ou interposição de recurso que ainda não gerou decisão monocrática ou colegiada da Justiça Ordinária (Federal o Estadual). O §2º do art. 52 quer repontar que o simples recurso ao Judiciário (que pode ser julgado procedente ou improcedente, cabível ou incabível, tempestivo ou extemporâneo) não tem o condão ou o poder automático e imediato de desfazer ou prejudicar os efeitos desportivos validamente produzidos em razão de decisão da Justiça Desportiva.
Se foi dito por quem pensou, idealizou e exteriorizou cada construção dos elementos integrativos da norma, o que posso complementar? Concordar e parabenizar, até porque, está em plena consonância com o sistema processual brasileiro, e mais ainda sob o olhar do NCPC, em que os efeitos suspensivos dos recursos foram titularizados aos órgãos revisores.[12]
Em um segundo olhar, mais crítico, entendo que qualquer restrição de aplicabilidade de uma norma constitucional por outra norma hierarquicamente inferior, resulta em indeclinável vicissitude constitucional. O Sistema hierárquico de normas impõe rigidez para se traduzir em segurança jurídica. Não há como imprimir uma supremacia constitucional diante da permissibilidade de que normas de patamar inferior possam contaminar os ditames referenciais do ordenamento jurídico democraticamente instalado.
Em que ponto do art. 217 §1º da Carta Magna se inseriu uma vírgula que permitisse a divisão de temas, limites ou condicionantes de sua aplicabilidade plena e imediata? O dogma da segurança jurídica exige que a liberdade do poder legítimo tenha legitimação desse mesmo poder, como bem assim explicita J.J. Gomes Canotilho[13]:
O Estado constitucional é “mais” do que Estado de direito. O elemento democrático não foi apenas introduzido para “travar” o poder (to check the power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder (to legitimize State power). Se quisermos um Estado constitucional assente em fundamentos não metafísicos, temos de distinguir claramente duas coisas: (1) uma é a da legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legislação no sistema jurídico; (2) outra é da legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder político.
Se a ordem desportiva possui legitimidade extraída da norma constitucional (Art. 217 §1º) com amplitude e sem travas, não se faz possível cogitar que uma norma inferior (Art. 52, §2º da Lei 9.615/98) impinja a legitimação constituinte.
A revisão parcial ou total a ser realizada pelo Poder Judiciário, sobre a decisão da Justiça Desportiva, não se insere do campo de regulamentação da norma infraconstitucional.
A mera retórica doutrinária não se debruça sobre a práxis forense, pois seria hipocrisia não reconhecer que o filtro pré-processual de esgotamento de instância e o prazo de exaurimento em 60(sessenta) dias dos processos na via desportiva resulta em vários fatos consumados que invariavelmente não serão derruídos por uma revisão judicial.
A visão de supremacia da norma constitucional sobre o indigitado Art. 52, §2º da Lei 9.615/98 pode ser abstraída dos vários constitucionalistas citados pelo Eminente Acadêmico da ANDD (Academia Nacional de Direito Desportivo), Dr. Gustavo Delbin[14], que condensou em artigo, proficiosa literatura sobre o tema, cujos trechos-chaves aqui reproduzo:
Na definição do doutrinador constitucionalista Alexandre de Moraes tem-se:
“ A própria Constituição Federal exige, excepcionalmente, o prévio acesso às instâncias da justiça desportiva, nos casos de ações relativas à disciplina e às competições desportivas, reguladas em lei (CF, art. 217, § 1º), sem porém condicionar o acesso ao Judiciário ao término do processo administrativo, pois a justiça desportiva terá o prazo máximo de 60 dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final (CF, art. 217, § 2º).”
A Constituição de 1988 consagrou, de forma mitigada, o denominado vínculo de justiça, que na definição de Canotilho e Vital Moreira corresponde à
“proibição de os desportistas recorrerem aos órgãos jurisdicionais do Estado antes de os órgãos da justiça desportiva se terem pronunciado. No entanto, a admissibilidade do vínculo de justiça desportiva não pode significar uma completa preclusão da competência dos órgãos jurisdicionais do Estado, designadamente quando estão em causa direitos fundamentais do cidadão, cuja lesão é constitucionalmente garantida através do recurso aos tribunais.
Assim, o poder disciplinar da Justiça Desportiva tem seu exercício limitado à prática dos desportos e às relações dela decorrentes, não afastando do Poder Judiciário, porém, desde que satisfeito o prazo constitucional, qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito”
O ilustre doutrinador Celso Ribeiro Bastos cita o comentário feito por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em Comentários à Constituição Brasileira de 1988:
“Deflui do texto a intenção de ver instituído, por lei, um contencioso administrativo para apreciar eventos ocorridos durante as manifestações desportivas. Isso não se coaduna bem com a autonomia das entidades desportivas, quanto a sua organização e funcionamento, que consagra o inciso I deste artigo.
Na verdade, esta norma importaria uma exceção ao disposto no artigo 5º, XXXV. E uma exceção escandalosa. Já que não é prevista quanto a outras modalidades de contencioso administrativo que se conhecem no País”
Mais uma vez carreando o sempre consciente magistério do eminente doutrinador constitucional Celso Bastos, conclui-se que a exceção dada à apreciação dos fatos inerentes ao desporto a uma justiça especializada não é senão a proteção ao próprio desporto: houve uma restrição da atuação do Poder Judiciário no âmbito desportivo, contudo não se extingue a garantia constitucional que assegura o acesso das pessoas físicas e jurídicas à justiça comum para defesa de seus direitos. O intuito do legislador constitucional neste dispositivo foi evitar a concessão de liminares pela justiça comum, com efeitos irreversíveis e na maioria danosos às competições e disciplina desportiva. (grifos fora do texto original transcrito)
Facilmente se observa que não há discrepância entre os renomados constitucionalistas pátrios, e inclusive lusitanos, acerca da abrangência incondicional da temática das lides desportivas a serem eventualmente conduzidas ao Poder Judiciário, e a finalidade apriorística do filtro meramente inibitório, mas nunca obstrutivo.
Aliás, a reboque, traz-se a lume o texto do art. 231 do CBJD, que exterioriza sem sombras os pressupostos para o exercício do princípio da proteção judiciária, que apenas nessas condições inobservadas ensejará uma sanção disciplinar:
Art. 231 – Pleitear, antes de esgotadas todas as instâncias da Justiça Desportiva, matéria referente à disciplina e competições perante o Poder Judiciário, ou beneficiar-se de medidas obtidas pelos mesmos meios por terceiro.
É salutar e oportuno afinar ainda mais o tema, permitindo-se admitir que na realidade, há matérias que por sua própria natureza não serão levadas ao Judiciário, não por vedação constitucional, mas pela casuística desportiva, e nesse sentir, colaciona-se doutrina de louvor técnico do “jus desportista” Martinho Neves Miranda[15], que fundamentando-se em ensaio proposto por Maria Raquel Rei, segmenta de forma gradativa as áreas de densidade desportiva, e defende que a depender do âmbito de atribuições de cada densidade, ter-se-á a concepção de competência exclusiva ou não da Justiça Desportiva.
B) Área de densidade desportiva máxima, constituída pelas normas editadas com a finalidade de disciplinar o encontro desportivo propriamente dito, traduzida no somatório de disposições que se denominam “leis do jogo”.
C) Área de densidade desportiva média, representada pelas normas que têm vinculação com a realização e o desenvolvimento das competições, embora não adquiram um caráter exclusivamente desportivo, e que se constituem antes como medidas de caráter administrativo.
D) Área de densidade desportiva mínima, composta pelas normas que se destinam as relações econômicas e sociais relacionadas à logística da atividade, como as que as disciplinam as relações laborais, higiene e segurança nos estádios, licenciamentos de marcas, publicidade...
Na busca desse critério, traz-se à colação a proposta apresentada por Jean-Jacques-Leu, que somente exclui da apreciação do Judiciário a discussão a respeito de regras ou decisões das federações, tomadas em virtude de critérios exclusivamente técnicos e que repercutam apenas no resultado do encontro competitivo.
Por outro lado, o manejo de regras que resultem na aplicação de sanções que vão além da disputa em si e do seu resultado e que atuem em outras esferas da atividade do apenado carecem de revisão judicial, como as que impõem o pagamento de multas, ou que acarretem a suspensão ou eliminação dos quadros de competição da entidade, vez que afetam direitos de ordem profissional e econômica.
Importante ressaltar que estudiosos do Direito Desportivo, com credibilidade inquestionável, defendem a insubmissão das matérias de natureza desportiva a revisão da jurisdição estatal, como v.g., Paulo Marcos Schmitt:[16]
...o §2º do art. 52 da lei nº 9.615/98, ao dispor que o recurso ao Poder Judiciário não prejudicará os efeitos desportivos validamente produzidos em consequência da decisão proferida pelos Tribunais de Justiça Desportiva, o controle jurisdicional em matéria de competições e disciplina, em regra, deve restringir-se à observância dos princípios que orientam a Justiça Desportiva e do devido processo legal, e não quanto ao mérito das demandas julgadas pelas instâncias desportivas.
O mais importante de tudo é saber que o tema vem sendo tratado com proficiência e seriedade, havendo teses e fundamentos que certamente orientarão o estudioso do direito desportivo no melhor caminho a ser percorrido, dependendo do destino que tiver de perseguir.
7. O ESPECTRO DA JUSTIÇA DESPORTIVA NO DIREITO COMPARADO
A dimensão da Justiça Desportiva é observada nos mais diversos regramentos utilizados entre os países que cultuam e sublimam a atividade desportiva entre seus povos, havendo um ponto em comum em quase todos eles, que é a intenção de se restringir a interferência da justiça estatal nas lides desportivas, o que é salutar e já defendido anteriormente nesse texto.
Ampliando o estudo na doutrina e legislação estrangeira, reporto-me ao Prof. Álvaro Melo Filho, em sua obra mais recente[17], onde reproduz o pensamento europeu de vários países em que é pujante a dogmática desportiva:
A ordem jurídica francesa optou, inicialmente, nos anos 70, por esse modelo de delegação para entidades desportivas e, depois, começou a impugnar, discutindo se essa cláusula de reenvio seria correta, ou não. A própria ordem jurídica inglesa, às vezes, pondera que os rigores da FIFA são inaceitáveis.
Na Alemanha, reconheceu-se a validade da decisão tomada, exceto quando se concluía pela desproporcionalidade, como por exemplo, quando a pena aplicada era a de eliminação. Isso importava na restrição da liberdade do exercício profissional do atleta, mas invocou-se eu haveria também a violação de um princípio de ordem pública.
Na espanha, o regime disciplinar desportivo não se esgota no âmbito interno das federações, nem se justifica unicamente em garantir a ordem estatutária de tais entes desportivos, transcendendo a este âmbito quando afetar o interesse público ou a ordem jurídica geral.
Já a Lex portuguesa(lei 5/2007) delimitou o monopólio da Justiça Desportiva às chamadas “questões estritamente desportivas”, ou, no linguajar dos franceses “litiges proprement sportifis”, construindo um “núcleo de questões inapeláveis judicialmente” ou célula irredutível do jogo” onde a reserva absoluta da jurisdição desportiva deflui do art. 18, ns. 2 a 4:
Acredito que o divisor de águas entre nosso ordenamento jurídico pátrio e a legislação alienígena é a constitucionalização da Justiça Desportiva, o que impede a limitação e contenção da plena e imediata aplicação da norma aberta do art. 217, §1º, submetendo ao Poder Judiciário qualquer tema julgado pela jurisdição privada.
8. UMA VISÃO CONSTITUCIONAL DA JUSTIÇA DESPORTIVA PELO STF
A intepretação linear e contextualizada do art. 217,§1º da CFRB já foi realizada pela Corte Suprema, o que se deu especialmente em dois julgados, dos quais se extraem trechos-chaves para facilitar a conclusão do leitor sobre o título do presente artigo.
É relevante destacar que o tema central do MS-25.938-DF era a constitucionalidade ou não da Resolução do CNJ que dispunha sobre a proibição da cumulatividade de funções do Magistrado com a de Julgador dos Tribunais Desportivos. E neste sentir, a Min. Carmem Lúcia se aprofundou sobre o tema de competências materiais da jurisdição desportiva, e eventual apreciação pela Justiça Estadual dos mesmos temas, como se vê:
Nestes casos, se ao juiz fosse permitido integrar órgão da Justiça Desportiva ficaria ele impedido de desempenhar o seu mister constitucional se sobreviesse órgão judicial por ele integrado de causa que já fora de seu prévio exame naquela. Tanto, por sí só, patenteia dificuldades que sobreviriam se fosse admissível a acumulação pretendida pelos Impetrantes.
A participação de magistrados em Tribunais de Justiça Desportivos, e em suas Comissões Disciplinares, sem qualquer dúvida pode vir a configurar prejuízo do desempenho imparcial de sua função judicante, pois questões já analisadas poderão ser levadas à apreciação de órgão do Poder Judiciário do qual eles façam parte. (destacou-se)
Importante ainda referir-se a outro trecho do voto da Min. Carmém Lucia, no aludido processo julgado pelo STF(MS 25.938/DF), pois espanca eventuais dúvidas ao realçar que: “nos termos do art. 217, §§ 1º e 2º da Constituição Federal, o Poder Judiciário poderá conhecer, ainda que subsidiariamente e sucessivamente ao exercício das funções da Justiça Desportiva, de controvérsias postas à decisão desta”.
Nessa assentada o Ministro Carlos Ayres Britto assinalou: “É certo que a Justiça Desportiva recebeu da Constituição tratamento para além do conferido ao processo simplesmente administrativo. Há um contencioso na Justiça Desportiva, na medida em que só permite o acesso às vias jurisdicionais com o exaurimento das instâncias desse outro.” (destacou-se)
Em arremate, trago a colação pequeno trecho do voto do Min. Marco Aurélio, agora no RE/RG nº 568/657-4/MS, onde enfatizou a literalidade do dispositivo constitucional em estudo: “a relevância da matéria decorre do fato de haver o envolvimento de princípio constitucional da maior envergadura - o do acesso ao Judiciário. A Carta da Republica, de início, restringe as situações em que é necessário acionar-se antes a esfera administrativa – a negociação para o ajuizamento do dissidio coletivo e o esgotamento das instâncias da Justiça Desportiva quando se tratar de disciplina e competição desportivas.”
9. UMA JUSTIÇA DESPORTIVA ÚNICA. A ILHA DO PODER
A Justiça Desportiva no Brasil não deve se configurar como uma porção de julgadores autossuficientes, cercada de poderes por todos os lados. Diz-se isso, porque há um comando normativo de estatura constitucional que dispõe textualmente sobre sua competência temática, fixa os pressupostos para a intervenção da jurisdição estatal, e mesmo assim, há casos concretos de jurisdicionados que residualmente se sentem insatisfeitos com suas deliberações, e ao ingressarem no Poder Judiciário, são retaliados, ameaçados e até punidos pelas entidades de administração e por eles próprios (Justiça Desportiva em seus mais variáveis segmentos).
A Justiça Desportiva não pode ser uma “Ilha do Poder”, que se impõe pela força coativa, descontextualizada do ordenamento jurídico, sob pena de ferir de morte o primado constitucional inegociável do estado democrático de direito, tão caro a sociedade brasileira, que o conquistou com braços fortes.
Não há descrença ou desprestígio na Justiça Desportiva nas poucas e remotas inserções das lides estatais, ao revés, a fortalece e corporifica-a como uma instituição sólida, transparente e acima de tudo ordeira e democrática. A clausura não reproduz segurança, pois só se sente seguro aquele que exerce os plenos poderes da liberdade.
Os tribunais bandeirantes colidem em seus posicionamentos, o que é verdadeiramente republicano, sendo oportuno reproduzir dois acórdãos antagônicos, para uma visão analógica e crítica do tema:
REEXAME NECESSÁRIO – MANDADO DE SEGURANÇA – ATLETA (JOGADOR DE FUTEBOL) QUE IMPUGNA IMPOSIÇÃO DE PENALIDADE A ELE IMPOSTA – INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL PARA CONHECIMENTO DA QUESTÃO – MATÉRIA QUE É AFETA À JUSTIÇA DESPORTIVA (ART. 217, §1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E LEI Nº 9.615/98) – SENTENÇA TORNADA INSUBSISTENTE – Nos termos do art. 217, §1º, da CF e art. 50 da Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé), toda e qualquer matéria relativa à disciplina e competições desportivas devem ser resolvidas no âmbito da Justiça Desportiva, somente sendo possível o acesso ao Judiciário após esgotamento dessa via. Faltando interesse para o atleta dirigir-se à Justiça Comum antes de procurar a Justiça Esportiva, não subsiste a sentença que examinou seu pleito.(grifou-se) (TJMS – ReexSen 2003.006222-0/0000-00 – Naviraí – 1ª T.Cív. – Rel. Des. Jorge Eustácio da Silva Frias – J. 13.09.2005)
CLUBE DE FUTEBOL CAMPEONATO BRASILEIRO TABELA DE CLASSIFICACAO IRRESIGNACAO MANUTENCAO DE RESULTADOS FIXADOS PELA C.B.F COMPETENCIA DA JUSTICA COMUM DIREITO ESPORTIVO – Insurgência contra a classificação fixada pela agravante. Decisão interlocutória determinando a inclusão do clube autor na Série A do Campeonato Brasileiro. Alegação de competência da Justiça Desportiva e, ainda, sucintamente, que a decisão impugnada seria irreversível e atingiria o interesse de terceiros. Decisão proferida pelo Plantão Judiciário extinguindo o processo. Reforma. Competência mantida. Quanto ao mérito, a decisão a quo impugnada merece reforma. O fato de o campeonato se encontrar em pleno andamento e, ainda, considerando que os jogos e resultados vêm ocorrendo de maneira peremptória, o risco de irreversibilidade da medida antecipatória se mostra bastante possível, o que, desta feita, exige um maior cuidado com sua concessão ou, até mesmo, sua denegação. Provimento do recurso, reformando a decisão antecipatória e mantendo os resultados e a classificação fixados pela agravante, e, ex officio, julgando extinta a ação pelo art. 267, inc. IV, do Código de Processo Civil, porque não exaurida a instância a que se refere o art. 217, § 1º da Constituição Despesas pelo autor, arbitrados honorários em cinco mil reais.(grifou-se) (TJRJ – AI 0020323-36.2014.8.19.0000 – 6ª C.Cív. – Rel. Des. Nagib Slaibi Filho – DJe 12.11.2014 – p. 23)
Na quadra dos julgamentos dos Tribunais Desportivos, não é incomum a aplicação de rígidas sanções aqueles que se socorrem ao Judiciário, sob o fundamento de violação do Art. 231 do CBJD:
PROCESSO Nº: 00073/2011 - 5ª COMISSÃO DISCIPLINAR
5ª Comissão Disciplinar
Data do Julgamento: 16/09/2011
Processo nº: 00073/2011
Denuncia - Denunciado: Rio Branco FC, incurso no Arts. 191 incisos I, II, III e § 2º c/c 231, todos do CBJD - AUDITOR RELATOR: DR. PAULO BRACKS.
Resultado: “Por unanimidade de votos, multar o Rio Branco FC em R$ 13.385,37 (Treze mil trezentos e oitenta e cinco reais e trinta e sete centavos), por infração ao Art.191, I,II, III § 2º do CBJD; por maioria, multa-lo ainda em R$ 100,00 (Cem reais), mais a exclusão do Campeonato Brasileiro Série C, por infração ao Art. 231 do CBJD, contra o voto do Auditor Dr. Washington Oliveira, que o absolvia”.
PROCESSO Nº: 00135/2011 - 1ª COMISSÃO DISCIPLINAR
1ª Comissão Disciplinar
Data do Julgamento: 28/11/2011
Processo nº: 00135/2011
Denuncia. Denunciados: Federação Amazonense de Futebol, incurso nos Arts. 239 e 191 incisos II e III do CBJD; Nacional Fast Club, incurso no Art. 231 do CBJD. AUDITOR-RELATOR: DR.WAGNER MADRUGA DO NASCIMENTO.
RESULTADO: “Por unanimidade de votos, multar a Federação Amazonense de Futebol em R$2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), por infração ao Art. 239 do CBJD e, absorvido o Art. 191 incisos II e III do CBJD; multar o Nacional Fast Club em R$5.000,00 (cinco mil reais), por infração ao Art. 231 do CBJD”.
10. CONCLUSÕES
Não é possível concluir sobre A (In)Eficácia do Art. 217, §1º da Carta Magna sem visitar o campo neutro da epistemologia jurídica e a zona cinzenta do empirismo. Os tempos são outros, e a dogmática se rende a supremacia da deformação conceitual globalizada.
Diante da transnacionalidade da lex sportiva, forçoso admitir que há uma soberania real dos organismos internacionais, como p.ex. a FIFA, sobre a soberania formal dos entes políticos legitimamente constituídos, resultando em consequências pragmáticas por vezes irreversíveis, o que significa dizer que a resposta não depende do raciocínio metafísico, mas do resultado que será necessário apresentar ao seu interlocutor, seja um cliente, um aluno, ou mero consultor despretenso com sua finalidade própria.
Por essas razões, a conclusão sobre a (In)Eficácia do art. 217,§2º da CFRB é sua, minha e de cada leitor, diante das circunstâncias que nos são postas, pois a interpretação normativa além de ampla, é consentânea sempre ao fenômeno jurídico ocorrido.
Da mesma forma, concluo sobre a segunda assertiva do tema proposto – Uma Justiça Desportiva Única – sob dois olhares. Primeiro, destacando que a Justiça Desportiva Brasileira é única, pois não há notícia em outros países de redação com essa magnitude, onde se instala um juízo pré-estatal inibitório e qualificativo das lides desportivas, e segundo, porque consegue se transvestir na prática em uma “ilha de poder” intransponível aos olhares do Estado, mesmo que formalmente se configure em violação literal e inadmissível a soberania da supremacia constitucional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Lei n. 9.615, de 24 de março de 1998. Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9615consol.htm>. Acesso em: 15 set 2017.
BRASIL, Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 17 mar. 2015. Seção 1, p. 1.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5 ed. Coimbra, Portugal: Livraria Almedina, 1991.
DELBIN, Gustavo. Aspectos Práticos do Processo Desportivo. Juris Síntese, Porto Alegre, n. 72, jul/ago, 2008.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo: Atlas, 2013.
DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2 ed. São Paulo: Atlas, 1994.
MELO FILHO, Álvaro. Novo Regime Jurídico do Desporto: comentários à Lei 9.615 e suas alterações, Brasília: Brasília Jurídica, 2001.
MELO FILHO, Álvaro. O Novo Direito Desportivo. São Paulo: Cultural Paulista, 2002.
MELO FILHO, Álvaro. Nova Lei Pelé: avanços e impactos. Rio de Janeiro: Maquinaria, 2011.
MIRANDA, Martinho Neves, O Direito no Desporto. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
SCHIMITT, Paulo Marcos. Curso de Justiça Desportiva. São Paulo: Quartier Latin, 2007.
[1] Flávio de Albuquerque Moura. Advogado. Sócio-Fundador da FMSA – FLAVIO MOURA SOCIEDADE DE ADVOGADOS. Presidente da Comissão de Direito Desportivo da Secção OAB/AL. Conselheiro no Triênio 2016/2018 da OAB/AL. Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Desportivo da Universidade Cândido Mendes(Ipanema). Membro Efetivo da ANDD – Academia Nacional de Direito Desportivo.
[2] Novo regime jurídico do desporto: comentários à Lei 9.615 e suas alterações./Brasilia : Braslília Jurídica, 2001, pág. 175
[3] Partindo para um conceito descritivo, que abrange a Administração Pública em sentido objetivo e subjetivo, definimos o Direito Administrativo como o ramo do direito público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública. (Direito Administrativo /Maria Sylvia Zanella Di Pietro,. – 26. ed. – São Paulo: Atlas, 2013, p. 48)
[4] Art. 4º, § 2º A organização desportiva do País, fundada na liberdade de associação, integra o patrimônio cultural brasileiro e é considerada de elevado interesse social, inclusive para os fins do disposto nos incisos I e III do art. 5º da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993. (NR) (Redação dada ao parágrafo pela Lei nº 10.672, de 15.05.2003, DOU 16.05.2003)
[5] Op.cit.p. 176 e 178
[6] Conflito de Normas / 3. ed. rev. – São Paulo : Saraiva, 1998, p. 49
[7] Op.cit.p. 183
[8] O novo direito desportivo / Álvaro Melo Filho. – São Paulo: Cultural Paulista, 2002. p. 66/67.
[9] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 99.
[10] § 1º. Sem prejuízo do disposto neste artigo, as decisões finais dos Tribunais de Justiça Desportiva são impugnáveis nos termos gerais do direito, respeitados os pressupostos processuais estabelecidos nos §§ 1º e 2º do artigo 217 da Constituição Federal.
§ 2º. O recurso ao Poder Judiciário não prejudicará os efeitos desportivos validamente produzidos em consequência da decisão proferida pelos Tribunais de Justiça Desportiva.
[11] Op.cit.p. 199/200
[12] NCPC. Art. 1.012, §§2º e 3º
[13] Direito Constitucional e Teoria da Constituição – 5ª Edição, Livraria Almedina, p. 100.
[14] ASPECTOS PRÁTICOS DO PROCESSO DESPORTIVO - Gustavo Delbin (Publicada no Juris Síntese nº 72 - JUL/AGO de 2008)
[15]Miranda, Martinho Neves, O direito no desporto – 2.ed. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. P. 148/153 e 162/163.
[16] SCHIMITT, Paulo Marcos, Curso de Justiça Desportiva. São Paulo: Quartier Latin, 2007.p.46
[17] MELO FILHO, Álvaro. Nova lei Pelé: avanços e impactos. Rio de Janeiro: Maquinária, 2011. p. 57/60.
Erro na Linha: #345 :: Undefined index: video
/home/andd/public_html/index.php